6 África

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  Um dia, Jalal se viu apaixonado por mim. Na verdade, acreditou estar apaixonado.
Lançava-me olhares insistentes, sorria quando cruzava comigo perto da cozinha,
fazia-me elogios. Comecei a me inquietar. E fiquei morrendo de vontade de contar
para alguém. Eu não sabia que ele era homossexual. Ele se deixava sodomizar por
Kadafi, mas tamanha era minha ignorância que eu pensava que pudesse ser uma
prática comum entre os homens, por mais chocante que fosse. O Guia tinha
diversos parceiros, até mesmo entre os militares de alta patente. Já eu precisava
de carinho, e a ideia de um homem amável me demonstrar gentileza me
enfeitiçou. Então, ele aumentou as oportunidades de contato, tocava levemente
minha mão ao passar, dizendo baixinho que me amava e que sonhava em se casar
comigo.
– Não notou que eu olho você desde o primeiro dia?
Não, eu não havia notado. Estava por demais envolvida em meu desespero e
minha solidão. De qualquer forma, os laços de cumplicidade estavam restritos ao
nosso espaço.
Mas Jalal criou coragem e foi declarar ao Guia sua intenção de me desposar.
Kadafi convocou nós dois. Ele escarnecia, com ar zombeteiro:
– Então vocês estão apaixonados? E ainda têm a audácia de dizer isso a mim,
seu mestre! Como ousa, vadia, amar outro? E você, inútil, como ousa olhar pra ela?
Jalal se contorcia. Ambos olhávamos para o chão, desconcertados, como
crianças de oito anos. O Guia nos expulsou do quarto. Jalal, que fazia parte da
guarda, foi proibido de entrar na casa por dois meses.
Mabruka passou no meu quarto.
– Sua vira-lata! Você pensa em casamento quando não faz nem três anos que
está aqui! Não passa mesmo de uma vagabunda.
Amal também veio me passar sermão.
– Ah, minha querida, eles têm razão. Você não pode estar apaixonada por
aquele gay. Não é pra você.
E, quanto mais falavam, mais eu me apaixonava. Jalal era gentil. E foi o
primeiro homem a dizer que me amava. Que me importava o sarcasmo daquela
gente maluca?
Alguns meses depois, foi anunciada uma longa viagem do Guia pela África.
Duas semanas, cinco países, um monte de chefes de Estado. Era visível que se
tratava de algo muito importante, dava para notar pela agitação de Mabruka. E a
casa inteira estaria na viagem. As "garotas" de Kadafi, adornadas com seu belo
uniforme, deveriam lhe fazer as honras. Eu inclusive! Às cinco da manhã de 22 de
junho de 2007, tinha início minha participação na comitiva, em um imenso comboio
rumo ao aeroporto de Matiga. Nenhuma espera, nenhuma formalidade. As cancelas
não passavam de grandes aberturas, e os carros dispararam até a pista de pouso,
para nos deixar aos pés da escada do avião. Metade da aeronave era ocupada por
mulheres, de uniformes cáquis, bege, azuis. O azul era o das forças especiais,
reservado para as verdadeiras mulheres-soldado, de queixo erguido, olhar glacial,
bem treinadas. Era o que haviam me dito. Eu estava de cáqui, como Amal. Falsas
mulheres-soldado. Verdadeiras escravas. No fundo do avião, com prazer, avistei
Jalal. O Guia viajava em outra aeronave.
Desembarcamos em Bamako, capital do Mali, e eu jamais poderia imaginar
uma recepção como aquela. Estavam enlouquecidos! Havia um tapete vermelho
para Kadafi, que se pavoneava em um traje branco com um mapa verde da África
costurado no peito. O presidente malinês, ministros e uma horda de oficiais
rivalizavam-se pela atenção do "rei dos reis da África". Acima de tudo, uma
multidão feliz, entusiasmada, como em êxtase, cantava, dançava e saudava: "Bemvindo, Muamar". Havia grupos folclóricos, danças tradicionais e máscaras dogons.
Eles vibravam e gingavam. Eu não podia acreditar no que via e ouvia.
Rapidamente, Mabruka assumiu o controle das operações. Fez sinal para que nos
dividíssemos em grupos e nos ajeitássemos nas caminhonetes, prontas para
arrancar, conduzidas pelos motoristas líbios de sempre. Toda Bab al-Azizia parecia
ter se deslocado para lá. A multidão se espremia para ver o comboio passar,
inquieta, desordenada, entoando o nome de Kadafi. Eu estava estarrecida. Como
era possível que ele fosse amado daquele jeito?, dizia a mim mesma. Aquelas
pessoas estariam sendo sinceras? Haviam passado por uma lavagem cerebral,
como se fazia na Líbia?
Chegamos ao Hotel Libya, onde a encarregada do protocolo, Saana, nos disse
para aguardar em um salão no qual se podia fumar tranquilamente. E depois nos
dividimos mais uma vez em comboio. Quase uma centena de carros, com tendas e
alimentos, uma logística insana. As ruas estavam fechadas, os africanos aplaudiam
à nossa passagem, e dentro do carro as garotas riam. Sim, o clima era de alegria,
quase carnavalesco. Eu me sentia em um filme. Mas, ao distribuir sorrisos à
multidão que nos saudava, eu não tinha como não achar aquela situação
estranhamente irônica. Ele nos tirara do subsolo para nos exibir sob o sol e
contribuir para sua glória.
Eu não sabia nada sobre o destino da viagem, os presidentes, ministros e
embaixadores que estavam na agenda de encontros. Nada do programa pessoal do
Guia. Seguíamos, como uma corte, sem fazer perguntas. O início da viagem foi
desgastante, pois rodamos quase mil quilômetros, atravessando Guiné de norte a
sul, para enfim chegar a Conacri, a capital. A única curiosidade das garotas que
estavam comigo era quanto à hospedagem. Esperavam hotéis luxuosos, com
discoteca e piscina. Mas logo vi que eu não teria essa sorte. Enquanto Amal e as
demais eram conduzidas a um hotel, Mabruka me fazia sinal para seguir o mestre,
que se hospedaria em uma residência oficial, uma espécie de castelo. Dividi o
quarto com outra garota, Affaf, mas no meio da noite fui chamada para fazer
companhia ao Guia. Ele não dormiu, e andava pelo quarto, nu, com o ar sombrio,
angustiado. Ele se virava rapidamente, pegava a toalhinha vermelha que eu
conhecia bem e enxugava as mãos, concentrado, ignorando minha presença. Logo
pela manhã, veio para cima de mim.
Durante o dia, encontrei o restante do grupo – Amal, Jalal e todos os outros.
Estavam em um hotel maravilhoso, e o clima era de festa. Eu nunca tinha visto
algo assim. Mabruka exigira que eu voltasse ao castelo ao fim do dia, mas não
consegui me conter e fui com os demais a uma discoteca. As luzes piscavam, as
garotas fumavam e bebiam, dançavam coladas aos africanos. Sirte e minha família
pareciam tão distantes. Eu havia aterrissado em um planeta em que os valores e
as crenças de meus pais não tinham lugar. Em que minha sobrevivência dependia
exclusivamente de qualidades ou artifícios que lhes causariam horror. Em que as
coisas não tinham pé nem cabeça. Jalal me observava de longe. Meu olhar cruzava
o dele e isso era suficiente para minha felicidade. Mas ele se aproximou.
– Só não beba – me ac  

No Harém De KadafiOnde histórias criam vida. Descubra agora