Isso faz parte do passado. Ou pelo menos as mulheres esperavam que fizesse.
Na Líbia pós-Kadafi, elas se revestiram de renovada ambição – profissional,
econômica, política –, cientes, apesar de tudo, de que a mentalidade não poderia
mudar da noite para o dia. A velha guarda é prevenida. A prova? O famoso discurso
proferido em 23 de outubro de 2011, dia da proclamação oficial da libertação do
país, pelo presidente do Conselho Nacional de Transição ( CNT), Mustafá Abdel Jalil.
Dezenas de milhares de pessoas haviam se deslocado para assistir à cerimônia,
que se realizava na maior praça de Benghazi, apenas três dias após a morte do
ditador. Em todo o país, milhões de televisores aglutinavam famílias,
impressionadas com a importância daquele acontecimento. A Líbia bradava sua fé
na democracia. O clima era de suspense e expectativa. E as mulheres, sem o dizer,
esperavam um gesto, uma evocação das ofensas passadas, talvez uma
homenagem. A esse respeito, o que se viu foi um fiasco.
Nem uma única palavra sobre seu sofrimento ou sobre quanto contribuíram
para a revolução. Nem uma única alusão ao papel que deveriam desempenhar na
nova Líbia. Ah, sim! Eu já ia esquecendo: uma pequena menção às mães, irmãs ou
filhas dos magníficos combatentes, aos quais a pátria tanto devia. E anunciou-se
que, em respeito à lei da sharia, doravante referência suprema em matéria de
direito, a poligamia não teria mais o entrave, para os homens – que fora instaurado
por Kadafi –, da necessidade de pedir à primeira mulher autorização para desposar
uma segunda. E isso era tudo. Um tapa na cara das mulheres ali tão atentas, que,
desde o início da cerimônia, tentavam em vão distinguir alguma silhueta feminina
nas tribunas oficiais, onde se pavoneava uma multidão de homens de terno e
gravata, tão orgulhosos de encarnar a renovação.
– Fiquei chocada, furiosa, revoltada! – confessou-me depois Naima Gebril, juíza
da corte de apelação de Benghazi. – Que discurso catastrófico! E juro: eu chorei. –
Fora tudo em vão?, me perguntava ela, como tantas outras. – A luta de nossas
mães e avós pelo direito à educação, ao trabalho, ao respeito. Toda a energia
depositada em nossos estudos para triunfar sobre as discriminações e exercer
livremente uma profissão. E depois o comprometimento irrestrito com a revolução,
desde o primeiro dia, quando a maioria dos homens tinha medo de sair às ruas.
Tudo isso para nos vermos negadas no dia da libertação? É uma vergonha!
Sim, é uma vergonha. Foi assim que todas se sentiram.
– Você se lembra do dilúvio de imagens mostrando as delegações do CNT em
visita pelas capitais ocidentais? – perguntou-me aquela que fora a primeira juíza
nomeada em Benghazi, em 1975. – Nenhuma mulher no horizonte! – E a visita de
Hillary Clinton a Trípoli, às vésperas da captura de Kadafi? – Não havia nenhuma
líbia para recebê-la!
Aliás, na ocasião, a secretária de Estado americana ficou publicamente
ofuscada, insistindo na necessária igualdade de direitos entre homens e mulheres.
– Como foi humilhante! – lamentou a universitária Amel Jerary. – Mas
convenhamos: nenhum homem jamais nos fará aparecer na foto ou se encolherá
para nos dar espaço. É preciso se impor à força, e eu lhe asseguro que as
iniciativas das mulheres vão se revelar cruciais.
Por toda parte foram criadas agremiações de mulheres, na forma de clubes,
associações, ONGs. Elas se agruparam em redes profissionais, de amizade,
regionais. As pequenas células clandestinas formadas durante a revolução se
transformaram em organizações a serviço das mulheres, das crianças, dos feridos,
da reconciliação. Elas supriram inúmeros serviços deficientes e a cruel falta de
iniciativas do governo. Criaram cursos de instrução cívica para expor os direitos e
responsabilidades de cada um na democracia: "Votar é um privilégio. Agarre essa
oportunidade. Agora é a sua vez de desfrutar desse direito!" E não veem a hora de
transformar essa presença em lobby político. Pois bem sabem que sua
emancipação passa por aí.
Um rápido passeio pelo Facebook permite constatar a abundância de grupos
femininos, a vivacidade de suas discussões sobre o futuro das líbias, a vontade de
se informar sobre a situação das mulheres nos outros países da revolução árabe e
de, enfim, se coordenar o mais rápido possível. Sim, elas estão cheias de
esperança. Comentam a lei eleitoral. Debatem sobre a conveniência ou não das
cotas. Exigem que haja ministras, embaixadoras, diretoras de bancos, de empresas
públicas, bem como administradoras, afirmando que ao menos "não se misturaram
com o sistema de Kadafi". Lê-las é algo que revigora e refresca. E eu sorria ao vê-
las publicar suas próprias fotos brandindo orgulhosamente o título de eleitor recémexpedido. Ah, elas farão bom proveito dele!
Elas mostram o que lhes agrada, mas também expressam o contrário. Em 18
de maio, uma jovem com quem, por seu ativismo, travei contato publicou em seu
mural no Facebook uma mensagem um pouco mais banal... e ressentida: "Hoje é
sexta-feira e o tempo está maravilhoso. Mas, sendo mulher na Líbia, estou
trancafiada em casa e deprimida por não ter o direito de ir à praia. Por que não
existem praias para mulheres? Não temos litoral suficiente? Quantas de vocês,
mulheres, sentem a mesma coisa?" Quantas? Milhares!
"É tão injusto!", logo respondeu uma delas.
"Morei numa rua que dava direto na praia e não tinha nem o direito de enfiar
os pés na água!", escreveu outra.
"Totalmente inaceitável!", foi o coro de uma multidão de internautas.
"Não é nem uma questão de lei. É uma das tragédias deste país!"
"Eu me lembro de um tempo em que nadava de biquíni!"
"De biquíni??"
Soraya não vai à praia. Não navega na internet. Não tem perfil no Facebook.
Nem mesmo tem amigas com quem possa compartilhar seus acessos de raiva ou
tirar o título de eleitor. Mas ela continua esperando que os crimes sexuais de Kadafi
não sejam esquecidos.
– Eu não sonhei, Annick! Você acredita em mim, não é? Os nomes, as datas, os
lugares. Contei tudo pra você. Mas era diante de um tribunal que eu gostaria de
testemunhar! Por que eu devo ter vergonha? Por que devo me esconder? Por que
eu deveria pagar pelo mal que me fizeram?
Sua revolta é a minha. E eu gostaria de compartilhá-la com outras líbias:
magistradas, advogadas próximas do CNT, que fossem defensoras dos direitos
humanos. No momento, ainda não há nenhuma que possa fazer sua parte. É um
assunto sensível demais. Tabu demais. Nada a ganhar. Tudo a perder. Em um país
inteiramente nas mãos dos homens, os crimes sexuais não serão nem debatidos
nem julgados. As portadoras das mensagens serão decretadas inconvenientes ou
mentirosas. As vítimas, para sobreviver, deverão continuar escondidas.
Única mulher membro do CNT, a jurista Salwa el-Daghili ouviu-me longamente a
respeito de Soraya.
– Como essa menina é corajosa! – dizia, concordando com a cabeça. – E como
é crucial que a história seja conhecida. Eis a verdadeira face daquele que governou
a Líbia durante quarenta e dois anos. Eis como governou, desprezou e sujeitou seu
povo. São necessárias pioneiras como Soraya para que se ouse falar da tragédia
das mulheres e do que o país efetivamente viveu. Mas, ao falar, ela corre grandes
riscos.
Ela tomava notas, a fisionomia pesarosa sob um lenço rosa pálido, o iPhone
vibrando dentro da bolsa Louis Vuitton.
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No Harém De Kadafi
Mystery / ThrillerA história real de uma das jovens presas do ditador da Líbia.