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  E foi assim que, provisoriamente, eu encontrei: um teto (na Porte de
Montreuil), uma amiga (ligeiramente aliciadora) e um ambiente (árabe). Dava para
me garantir num primeiro momento. E para pôr tudo a perder, no final.
Na primeira noite, Warda quis me levar ao La Marquise. De início recusei, mas
tive receio de que ela me pusesse para fora. Na boate, ela me apresentou um
tunisiano elegante e gentil, Adel, que logo se apaixonou por mim. Fui muito clara:
eu amava outro e lhe seria fiel. Ele reagiu de maneira amável, revelando-se muito
doce, um perfeito cavalheiro. Contentava-se em ir sempre que possível ao La
Marquise e nos convidar para jantar e beber alguma coisa. Warda e seus amigos
bebiam muito. Já eu, seguia no suco de frutas. Hicham me fizera jurar sobre o
Corão que não tomaria mais nem uma gota de álcool. E foi assim, tolamente, que
passei os três primeiros meses de minha estada parisiense.
Até que meu visto venceu. E a angústia voltou. Eu não relaxava mais, deixava o
passaporte no quarto para não correr nenhum risco. Estava fora de questão voltar
ao La Marquise, eu disse a Warda. Ela riu.
– E daí? Todas as garotas da boate estão na mesma situação. A polícia se
preocupa mais com homem e vagabundo. Não estão nem aí pra você.
O dinheiro logo começou a faltar. E a relação com Warda se deteriorou. Ela
chegou a me impedir de tocar em comida na geladeira.
– É para o meu filho!
Telefonei para papai, para que me socorresse.
– Como você foi gastar seu dinheiro? Arranje um trabalho, Soraya. Lave pratos,
se for preciso!
Eu me senti ofendida.
– Se você preferir, volto direto para Bab al-Azizia! Não me importo nem um
pouco!
Ele mandou quinhentos euros. Apenas. Após uma passada no Carrefour com
Warda, restou-me pouco mais de cem.
Então Adel me convidou para morar na casa dele. Seu apartamento era grande,
eu teria meu quarto, viveríamos como amigos.
– Que ótimo – disse Warda. – É a solução ideal.
Basicamente, aquilo queria dizer: "Cai fora!"
Assim, morei seis meses em Bagneux, na periferia de Paris. Seis meses de
relativa tranquilidade, pois Adel, que gerenciava uma pequena construtora, se
esforçava para ser uma companhia agradável e respeitosa. Ele saía para trabalhar
pela manhã e me deixava cinquenta euros para eu me alimentar e fazer as
compras. Ele sabia que eu era apaixonada por outro, eu sabia que isso o chateava,
mas convivíamos em harmonia. Eu confiava nele. Quando lhe contei o drama que
passara em Bab al-Azizia, ele acreditou imediatamente. Ele tinha amigos líbios que
já haviam lhe falado sobre o rapto de meninas nas escolas. Já Warda duvidou de
minha história desde o início. Fiquei me sentindo uma idiota por ter confiado nela!
Ela defendia Kadafi com o furor de uma crente, e isso me deixava doente.
– É a honra dos árabes, o único a erguer a cabeça, a carregar nossa bandeira! É
um Guia no sentido glorioso do termo, e um Guia não saberia agir de maneira vil.
Acho um absurdo você querer aparecer falando mal dele!
Era insuportável ouvir isso.
Mas então uma noite, ao voltarmos da festa de aniversário de Adel no
restaurante Mazazic, perto da Place de la Nation, ele veio ao meu quarto e foi
muito insistente. Eu cedi. Ele foi sincero e comovente. Até dissera a seus amigos
que queria casar comigo. Enfim, eu acredito. Porém mantive minha posição: eu não
era desimpedida, meu namorado viria se juntar a mim tão logo conseguisse seu
passaporte, em algumas semanas. O ciúme começou a minar nossa amizade. Até
que um dia, enquanto eu tomava banho, ele atendeu meu celular – era Hicham.
Ele elevou o tom de voz. Depois vieram os gritos. Quando cheguei, exasperada, ele
desligara aos berros.
– Filho da puta!
Não consegui entender por que ele traíra minha confiança. Com que direito
atendera meu celular? Liguei de volta para Hicham, que não queria falar comigo.
Acabei explodindo. Aquela situação já havia se estendido demais. Eu tinha de sair
dali. E arrumar um trabalho.
Um egípcio que conheci na mercearia do bairro me apresentou Manar, uma
marroquina que trabalhava em um bar-restaurante tocado por um cabila, numa
ruazinha de Montreuil. Ela me ensinou a fazer os cafés e a servir chope. Eu
ganhava cinquenta euros por dia mais as gorjetas, que podiam fazer o valor saltar
para até cem euros! Isso mesmo! Além disso, a marroquina me propôs dividir uma
quitinete que ficava no andar de cima. Eu já trabalhava no local havia um mês e
meio quando percebi que o bar era bastante duvidoso – o patrão às vezes abria as
cortinas e mulheres dançavam nuas; além disso, e o que me deixou mais
indignada, minha colega de quarto estava me roubando. Fui embora com minhas
coisas debaixo do braço.
Warda, com quem eu mantivera contato, me apresentou a uma tunisiana que
trabalhava num bar na Porte des Lilas. Comecei lavando pratos, antes de aprender
a servir e a marcar as comandas. O gerente cabila percebeu que alguns clientes
vinham para me ver e mandou que eu ficasse sempre no salão. Isso desagradou à
tunisiana. Um me tratava como isca; a outra, como empregada. Até que, uma
noite, voltando ao quarto que eu dividia com outra marroquina, percebi que
algumas de minhas coisas tinham sido roubadas. Peguei minha mala e saí batendo
a porta.
Estava de novo na rua e não sabia mais a quem recorrer. Pensei de novo no
egípcio. Ele me acolheu em um imenso apartamento que dividia com várias
pessoas. Não me pediu nada, mas eu me senti desconfortável. Era um peso morto.
Qual seria meu futuro? O que eu podia esperar de Paris? Não havia aprendido
francês. Meus documentos não estavam regulares e eu corria o risco de ser
deportada a qualquer momento. Não estava construindo nada. Foi então que
Hicham me ligou. Ver seu nome no visor do celular foi um sopro de esperança. Ele
pensara em mim justamente quando eu estava desmoronando.
– Quando você vem? – perguntei. – Preciso de você!
– Nunca, entendeu? Nunca! Você não foi nem capaz de se manter fiel!
Fiquei atordoada. Liguei para minha mãe.
– É tudo culpa sua! Minha vida é uma porcaria. Estou perdida, mamãe. Perdida!
Não sei o que fazer, em quem posso confiar, aonde ir. É como se eu fosse
amaldiçoada. E por sua causa.
– Por minha causa?
– Eu não teria ido embora se você tivesse aceitado Hicham!
– Ah, Soraya. Não diga besteira. Volte pra casa. A França não é boa pra você.
Volte pra nossa casa.
A ideia de voltar para a Líbia nem chegou a germinar. Voltar? Mas eu não era
turista, nem mesmo emigrante voluntária. Eu tinha fugido! E era procurada por um
dos homens mais poderosos do mundo! Descarregara tudo em cima de mamãe,
mas a verdadeira causa de minha partida fora Kadafi.
– Voltar seria muito arriscado, mamãe! Eles voltariam a me procurar. Jamais
vão me deixar em paz.
– Faremos o possível pra esconder você. Seu pai se preocupa, mas você viveria
comigo em Sirte. Vieram te procurar no início, mas acho que se acalmaram. Não
quero você triste assim em Paris.
Então minha decisão foi tomada. Em questão de segundos. Por impulso e por
tristeza. Eu não sabia como a França funcionava; o país me fascinava, mas não era
para mim. Eu nem aprendera francês! Fui conversar com Warda, que aprovou
minha partida. Mas ela me preveniu: meu visto já vencera, por isso eu teria de
pagar uma multa no aeroporto. Então, para me facilitar as coisas, ela telefonou a
um amigo que era policial no Aeroporto Charles de Gaulle. E seria ele que, três dias
depois, no aeroporto, embolsaria os mil e quinhentos euros que eu separara para
evitar que fosse proibida de voltar um dia à França. Pelo menos foi assim que
entendi. Felizmente, no dia anterior mamãe me enviara dois mil euros.
Em 26 de maio de 2010, tomei o avião de volta à Líbia, com uma mala
superleve. Poucas roupas, nenhum livro, nem mesmo uma foto. Não me restara
nada dos quinze meses passados na Cidade Luz. Nem mesmo o pequeno desenho
que um retratista fizera de mim num dia de primavera aos pés da Torre Eiffel, que
Adel guardara como lembrança.  

No Harém De KadafiOnde histórias criam vida. Descubra agora