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  Ele chegava a se fazer de doente para que estudantes fossem reconfortá-lo.
– Eu tinha dezesseis anos e estudava no Liceu do Pensamento Vanguardista
quando um professor anunciou que papai Muamar estava doente. Um ônibus foi
fretado para nos levar ao quartel, e ele nos recebeu em sua tenda. Trajava
djelaba* branca e um pequeno chapéu de algodão bege, e nos abraçou, uma após
a outra. Estávamos muito intimidadas, mas ele não parecia nem um pouco doente.
Outra se lembrava de ter sido levada pela escola à mesma katiba, para uma
homenagem ao coronel Chadli Bendjedid, presidente da Argélia.
– Kadafi queria sempre estar cercado de uma corte de jovens. Servíamos de
propaganda e alimentávamos sua obsessão.
Um dia, contou uma dessas professoras, um clã originário de Misrata organizou
uma grande festa oficial de apoio e obediência ao Guia. Ele adorava esse tipo de
manifestação, sempre ávido pelo apoio dos mais diferentes grupos. Foi ali que ele
notou uma menina, amiga da que contou a história. No dia seguinte, suas guardas
foram buscá-la na escola. O diretor se recusou – não era hora, ela estava fazendo
prova. Mas na mesma noite, durante uma festa de casamento, ela foi levada. Ficou
desaparecida por três dias, durante os quais foi violentada por Kadafi. Assim que
voltou, ela se casou com um de seus guarda-costas.
– Foi o próprio pai dela, um professor, que veio me contar, implorando para que
eu tomasse cuidado.
O sinal para o início da aula soou e elas rapidamente se foram, me pedindo que
não publicasse seus nomes. Em Sirte nada é simples. Tantos habitantes ficam
remoendo a decadência da cidade, amargurados, cheios de ódio e pessimismo,
convencidos de que o novo poder lhes fará pagar por muito tempo pela ligação
visceral com o Guia.
Acompanhar os passos de Soraya não foi fácil, pois eu temia voltar a atenção
para ela ou para sua família, despertar a ira de seus irmãos ou comprometer seu
futuro na Líbia. Mais do que nunca, sua história tinha de ser mantida em segredo.
Só mesmo Hayat, a prima tunisiana e hoje única e fiel confidente, se mostrou
acolhedora, testemunha afável das tentativas de Soraya de fugir, de ter uma nova
vida e se livrar dos atritos familiares. Infelizmente, não houve a menor chance de
as garotas que tinham vivido com ela em Bab al-Azizia me encontrarem. A primeira
Amal está casada e só pede que a esqueçam. A segunda, Amal G., entre sexo e
álcool, vive na nostalgia de seu grande homem e detesta a ideia de Soraya o
denunciar. Um motorista de Bab al-Azizia e duas mulheres que trabalharam no
serviço do protocolo, em conversa, lembravam apenas de ter cruzado com Soraya,
dizendo ter dela uma vaga lembrança. Era tudo. Pouquíssimas pessoas tinham
acesso àquele sórdido subsolo.
Finalmente, em Paris, Adel, o amigo tunisiano, me proporcionou algumas
chaves para melhor compreender o fracasso da estada de Soraya na França. Eu o
encontrei em um café de Porte d'Orléans. Atarracado, com os cabelos penteados
para trás e a fisionomia muito doce, ele me falou de Soraya com nostalgia e
ternura.
– Ela chegou despedaçada, desestruturada, sem a menor experiência de
trabalho, de horários, de disciplina, de vida em sociedade. Era como uma menina
que tivesse desaprendido o mundo por completo. Também como um filhote de
passarinho tentando alçar voo, porém sempre se chocando contra o vidro da
janela.
Adel a ajudou como deu. Acolheu-a em sua casa, quando ficou evidente que ela
não poderia mais ficar com Warda; esforçou-se para que ela conseguisse encontrar
um trabalho – entre eles, uma breve experiência em um salão de beleza, que não
durou muito, pois Soraya não falava francês; iniciou contato com um advogado
para que ela conseguisse regularizar seus documentos; cobriu suas necessidades
básicas durante muitos meses.
– Era terrível vê-la se debater e sempre fracassar. Enganada por falsas
promessas, abusada por homens que só queriam se aproveitar dela.
Seu erro foi não se esforçar para logo aprender francês. Erro agravado por seus
primeiros contatos, com Warda e alguns outros que conheceu no La Marquise,
restaurante de especialidades libanesas aonde fui uma noite e que, depois da
meia-noite, se transforma em boate oriental. Com certeza era muito mais fácil
viver em um ambiente de língua árabe. Mas isso lhe impossibilitava qualquer
integração à sociedade francesa, qualquer chance de relações, de formação ou de
emprego. A verdade é que Soraya não se agarrava às oportunidades, incapaz de
dormir antes das quatro da manhã e de se levantar antes das onze, era arredia a
toda disciplina e a ordens dadas por quem quer que fosse. Como se, depois de
Kadafi, ninguém mais pudesse exercer nenhum direito ou autoridade sobre ela.
Tendo perdido o pai prematuramente em Gabes, Adel, o mais velho de três
filhos homens, aprendeu muito cedo a fazer as vezes de chefe da família. Teve que
interromper os estudos para ajudar em casa, mudou-se para Paris e abriu uma
pequena empresa de construção e reforma de apartamentos, na qual trabalhava
muito duro. Acolheu Soraya como se ela fosse "o novo bebê da família". Ela estava
vulnerável, e ele devia cuidar dela. Um pouco apaixonado, certamente. E quem não
se apaixonaria por Soraya, quando ela dançava no La Marquise fazendo ondear
seus grossos cabelos cor de ébano e rindo de modo esplendoroso? Ela incomodava
as outras garotas, livre demais, radiante demais, mas batia recordes de
popularidade com o restante do pessoal. Durante o dia, fumava, falava ao telefone,
assistia à TV. Às vezes chorava, presa às lembranças, às perguntas, às angústias.
Ela podia lhe dizer qualquer coisa, lembra Adel. Até mesmo falar de Kadafi com,
segundo ele relatou, "um estranho misto de ódio, furor e respeito". Soraya
protestaria diante dessa última palavra. Mas não é de surpreender que uma
espécie de deferência venha se mesclar à rejeição e ao ressentimento por aquele
que teve sobre ela, em uma idade tão crucial, o direito de vida e morte.
– Eu sei que ela queria que eu lhe dedicasse mais tempo – lamentou Adel –,
que saísse com ela durante o dia e tivesse a mesma disposição noturna que ela,
sem limitações nem obrigações. Mas eu não podia! Eu estava esgotado! Não é fácil
se dar bem aqui na França quando se é imigrante. Demanda vontade e um
trabalho insano. Ela não entendia isso. Não estava pronta.
A convivência teve de chegar ao fim.
Adel não lhe permitiu esmorecer quando ela deixou o trabalho num primeiro
bar, e depois em outro. Ele ia visitá-la no sótão em que morava, fazia compras
para ela.
– Eu via que ela não estava conseguindo evoluir.
Quando ela lhe telefonou para dizer que estava de partida para o aeroporto,
que ia voltar para a Líbia, ele não acreditou.
– Você não pode fazer isso! Não é possível!
Ela telefonou para ele algumas horas depois, de Trípoli.
– Soraya! Você está cometendo um grande erro.
– Não tive escolha!
– Então, aguente as consequências. 

  Nota
* Espécie de robe largo com mangas longas usado tanto por homens como por mulheres na região do Magreb e nos países árabes em geral. (N. do T.)  

No Harém De KadafiOnde histórias criam vida. Descubra agora