7 Hicham

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  A viagem pela África não marcou o fim do meu sofrimento, mas o fim da reclusão
total. O Guia havia perdido o interesse? Estaria eu com o prazo de validade
vencido? Não sei. Ele jamais teve lógica ou explicação. Eu vivia um dia após o
outro, a seu bel-prazer e em sua total dependência, sem o menor horizonte. Mas,
no dia em que voltamos da viagem, ele mandou Mabruka me chamar e, com cara
de desgosto, foi dizendo:
– Não te quero mais, vadia. Vou te integrar às guardas revolucionárias. E você
vai morar com elas. Agora vai! Chispa!
Ali mesmo, Mabruka me deu um celular.
– Se tiver vontade de falar com a sua mãe...
Aquilo foi completamente inesperado. Assim que pude, liguei para mamãe. Ela
me vira na TV estatal, de uniforme, atrás de Kadafi no estádio de Conacri, e
pareceu quase feliz ao me dizer isso.
– Como eu gostaria de ver você, minha querida. Você me faz tanta falta!
Tomei coragem para fazer um novo pedido a Mabruka, e, contrariando todas as
expectativas, ela me respondeu que mamãe poderia passar para me ver dois dias
depois. Sim, em Bab al-Azizia.
Imaginá-la desembarcando naquele universo certamente tinha algo de
aterrorizante. Mas eu precisava tanto dela. Então lhe expliquei como chegar até a
garagem, e ali alguém a conduziria à residência do Guia. Eu esperava que todo
mundo fosse gentil com ela. Como pude ser tão ingênua? Mabruka, Salma e Fathia
mostraram-se detestáveis e insolentes.
– Veio ver sua filha? Lá embaixo!
Amal, felizmente, logo foi abraçá-la e se apressou em me avisar, e eu corri para
seus braços, onde fiquei chorando por um bom tempo. Nem conseguia falar. O que
dizer a ela? Contar o quê? Por onde começar? Aquele subsolo falava por si só. E
meus soluços deviam ser insuportáveis. Mabruka zombou. Mamãe ficou magoada. E
então nos separaram.
Alguns dias depois, Galina apareceu em meu quarto, pálida. O Guia chamava
nós duas, ainda exigia explicações sobre o incidente na viagem. Fiquei
embasbacada por ele não ter assuntos mais importantes com que se ocupar.
– Por que você mentiu afirmando que ela estava menstruada? – perguntou à
enfermeira.
– Eu não menti! Os ciclos às vezes são irregulares em garotas jovens, e a
menstruação pode vir aos poucos.
– Você não passa de uma cínica, mentirosa! Farida me contou a verdade.
Quanto a você, vadiazinha, vai para o seu quarto. Você não perde por esperar!
Foi a última vez que vi Galina em Bab al-Azizia. Somente um bom tempo
depois, já no início da revolução, a vi de repente na televisão, filmada no momento
de seu retorno à Ucrânia; o segredo de sua experiência na Líbia ia-se com ela.
Alguns dias depois do desastroso interrogatório, Kadafi me chamou mais uma vez e
me violentou com tamanha brutalidade que saí dali grogue e coberta de
hematomas. Amal G., outra garota da casa, que normalmente se mostrava
indiferente ao que acontecia comigo, ficou tocada.
– Tenho que tirar você daqui um pouco.
Nem ao menos respondi, eu não tinha mais esperança; os dias se sucediam e
eu me afundava silenciosamente. Mas ela voltou ao meu quarto com um ar
triunfante.
– Mabruka concordou que eu leve você à minha família!
E então ela me levou para passar um dia em sua casa, ou melhor, na "outra
casa", onde sua mãe e sua irmãzinha nos esperavam diante de um belo cuscuz.
Três dias depois, Amal G. obteve autorização para sair comigo mais uma vez.
Aquela nova liberdade condicional era inacreditável, e eu não sabia como
interpretar tal reviravolta nas atitudes de meus carcereiros. De qualquer forma,
aquelas horas fora da caverna representavam tamanha lufada de ar fresco que fui
sem perguntar nada. Eu já nem pensava em fugir. Não tinha mais esperança.
Sonhos, menos ainda. Eu estava sepultada, privada de tudo que estivesse fora de
Bab al-Azizia. Eu seria uma daquelas mulheres, entre tantas outras, que
pertenceriam para sempre a seu mestre. Não poderia nem imaginar que, naquele
mesmo dia, outro homem fosse entrar em minha vida.
Amal G. me levara para almoçar no velho bairro dos pescadores, junto ao mar.
Estávamos indo embora, ela estava dando marcha a ré, quando um homem gritou:
– Cuidado!
Ele saiu do carro dele, no qual havíamos acabado de bater, com uma cara
irritada. Mas logo se acalmou. Trocamos um olhar, depois um sorriso. E pronto. Foi
como um raio. Eu nem sabia que aquilo existia. Um terremoto. Ele tinha uns trinta
anos, era encorpado, forte, musculoso, os olhos tão negros quanto os cabelos e
cheios de energia. Ou melhor, de coragem. Fiquei abalada. Mas Amal G. deu
partida e tomou o caminho de Bab al-Azizia, e a vida retomou seu curso entre o
subsolo e o quarto do mestre, entre o torpor e a submissão.
Uma tarde, fui novamente autorizada a sair com Amal G. Ela queria levar a
irmã mais nova a um parque de diversões e me levou para conhecer os brinquedos.
Um deles parecia uma grande peneira. As pessoas se acomodavam no interior do
círculo, agarravam-se às bordas e o brinquedo era sacudido em todos os sentidos.
Nós ríamos e gritávamos, tentando manter o equilíbrio, quando descobri que quem
controlava o brinquedo era justamente o homem do carro. Nossos olhares se
encontraram de novo, e ele acelerou o ritmo da peneira. Que susto e que
empolgação! Quanto mais eu ria, me agarrando à borda, mais ele aumentava o
ritmo.
– Já nos vimos antes, né? – ele gritou para mim.
– Sim, eu lembro. Como você se chama?
– Hicham. Pode me passar seu telefone?
Aquilo foi extraordinário! Tão proibido e tão fabuloso! Ele não tinha papel para
anotar, mas me passou o número dele, que eu digitei e liguei, para que o meu
número aparecesse em seu celular. Amal G. logo me arrastou para longe dali.
Ao voltar a Bab al-Azizia, eu me encontrava em um estado de doce euforia. A
vida retomava suas cores. Telefonei para ele do meu quarto. Sabia que aquilo era
uma maluquice, mas ele atendeu imediatamente.
– Onde você está? – perguntou.
– Em casa.
– Gostei muito de te ver de novo, no brinquedo. Uma feliz coincidência, né?
– Eu reconheceria você em qualquer lugar.
– Gostaria muito de te ver mais uma vez. O que você faz da vida?
Ah, essa pergunta... Eu devia ter esperado por ela. O que eu poderia
responder? Eu não fazia nada da vida. Eu não fazia nada da minha vida. Aliás, nem
vida eu tinha. Era um abismo. Eu me debulhei em lágrimas.  

No Harém De KadafiOnde histórias criam vida. Descubra agora