Um dia, mamãe, que me dava notícias ao telefone, me disse que Inas, uma
amiga de infância da época de Benghazi, estava em Trípoli e queria muito me ver.
Ela me passou o número de telefone, para o qual logo liguei e deixei recado.
Queria muito encontrar pessoas normais, da minha vida de antes, sem saber se
isso ainda seria possível. Inas imediatamente retornou minha ligação,
entusiasmada. Pedi seu endereço e me propus a ir encontrá-la em seguida.
– Sério? Você pode sair de Bab al-Azizia?
Ela sabia! Eu estava estupefata. Como foi que mamãe ousou lhe dizer a
verdade, ela que desde o começo mentia a todos da família?
Peguei um táxi e pedi a Inas que pagasse a viagem.
– Como é possível uma garota que mora na casa do presidente não ter dinheiro
nem pra tomar um táxi? – ela brincou.
Sorri sem responder. O que ela sabia realmente? O que significaria para ela
"morar na casa do presidente"? Acreditava que fora uma escolha minha? Uma
posição social e um trabalho de verdade? Em todo caso, eu seguiria pisando em
ovos. Entramos na casa, e a família toda veio me abraçar.
– Vamos chamar sua mãe pra ela vir ficar com a gente também – disse Inas,
em súbita empolgação.
– Não!
– Por quê?
– Não precisa. Estou passando uns tempos na casa de uma moça, fora de Bab
al-Azizia, e ela não quer que ninguém saiba.
Todo mundo me olhou em silêncio, com ar incrédulo. Então a pequena Soraya
agora mentia para a mãe... O que não faz o ambiente.
– Qual é sua relação com Bab al-Azizia? – alguém perguntou.
– Não quero falar sobre isso. E mamãe já deve ter contado a minha história.
No andar de cima, acendi um cigarro, provocando um misto de espanto e
desaprovação nos olhos de toda a família. Soraya tinha mudado para pior.
Fiquei para dormir no quarto de Inas. Para mim foi como dar uma pausa de
tudo. Um pequeno e doce retorno à infância. Amal G. devia estar fula de raiva e
preocupação. Não respondi a nenhuma de suas muitas chamadas. Quando enfim
atendi, na manhã seguinte, ela urrava.
– Como é que você sai sem me avisar?
– Eu precisava respirar, você entende? Na sua casa eu me sinto numa nova
prisão. Obrigada por me tirar de Bab al-Azizia, mas agora me deixe respirar um
pouco.
Ela continuou berrando e eu me pus a chorar, então Inas se apossou do
aparelho.
– Sou amiga de infância de Soraya, minha família está cuidando dela, não se
preocupe.
Mas Amal G. insistia. Segundo ela, eu me colocara em uma situação gravíssima
e não podia medir as consequências. Inas acabou passando seu endereço.
– Estou indo até aí!
Era o que eu temia. O único refúgio que me restava, aquele que ninguém em
Bab al-Azizia seria capaz de imaginar, acabara de ser descoberto. Eu me senti
caçada. E telefonei para Hicham.
– Eu lhe imploro, venha me buscar. Você é a única pessoa que quero ver agora.
Ele chegou em alguns minutos e praticamente me raptou. O carro se
embrenhou pelas ruas de Trípoli, logo estava na periferia e depois em direção ao
interior. Ele estava tenso ao volante, atento ao caminho. Eu olhava seu perfil com a
cabeça repousada no banco e relaxada de uma forma que havia muito tempo eu
não ficava. Eu não pensava, não tinha um plano, me limitava a sorrir,
simplesmente confiando naquele homem que eu via apenas pela terceira vez. E eu
não estava enganada. Ele tinha força. E vitalidade. Ele me levou a um pequeno
bangalô de férias.
– Agora descanse – me disse. – Conheço sua história. De agora em diante, não
vou deixar ninguém te fazer mal.
Amal G. fora vê-lo sem eu saber, para lhe contar sobre meus laços com Bab alAzizia e adverti-lo: "Não é garota pra você". E então ela me telefonou. Já havia
tentado falar comigo uma dezena de vezes.
– Atende – disse-me Hicham. – Você não deve mais ter medo dela. Diga a
verdade.
Atendi tremendo. Ela xingava.
– Você tá maluca, Soraya! Tá realmente procurando encrenca. Como você tem
coragem de fugir justamente quando eu estava indo te buscar?
– Me deixa em paz! Estou longe. Estou na casa de uma amiga.
– Mentira! Sei muito bem que você está com Hicham!
Desliguei. Ele me tomou o aparelho das mãos e ligou novamente para ela.
– Deixe a Soraya em paz. Esqueça dela. Você já lhe fez mal o bastante. Agora
sou eu quem a defendo. E sou capaz de matar quem tentar machucá-la.
– Você não me conhece, Hicham. E vai pagar muito caro por isso. Vai mofar na
cadeia!
Fui feliz durante três dias. Nas primeiras vinte e quatro horas eu só chorava,
mas acho que apenas vertia os tanques de lágrimas acumuladas naqueles anos.
Hicham se mostrava paciente, meigo, reconfortante. E me fazia comer, enxugavame as lágrimas. Eu não estava mais sozinha. Talvez fosse possível que, depois de
tudo, houvesse um "pós" Bab al-Azizia. Mas a notícia de minha fuga caiu como uma
bomba na mansão de Kadafi. Amal G. levou Inas para falar com a minha mãe, que
logo me ligou.
– Eu estou perplexa, Soraya. Você mentiu pra mim por dois meses! Como
pôde? Você está na cidade, fuma e ainda foge com um homem. No que você se
transformou, pequena Soraya? Numa mundana! Numa puta! Preferiria te ver morta
que numa vida assim, devassa. Ah, como você me decepcionou!
Senti o golpe. As aparências estavam contra mim. Mas como ela podia não
querer que eu simplesmente tentasse sobreviver?
Amal G. telefonou.
– Não importa o que faça, você vai voltar a Bab al-Azizia.
As forças da segurança nacional, que vinham em caminhonetes, foram bater na
casa dos pais de Hicham.
– Onde está seu filho? Ele tem de devolver a garota que raptou.
Seus irmãos telefonaram para ele em pânico. Ao fim de três dias, nós nos
rendemos.
Voltei para a casa de Amal G., que me deu duas opções: me levar para a casa
de meus pais ou para Bab al-Azizia. Escolhi meus pais, mas bastante aflita. A
confiança não existia mais. Mamãe me lançava olhares duros, como se meu rosto
estampasse minha degradação. Como se eu já não fosse sua criança roubada, a
quem haviam feito mal. Como se eu fosse uma filha culpada, perdida. Meu pai me
acolheu com mais ternura. Ele me olhava com atenção, parecia não me reconhecer.
Acho que eu havia crescido um pouco. Mas, sobretudo, envelhecera. Contudo, ele
tinha de cumprir seu papel de pai e rapidamente exigiu satisfações. Quem era
aquele Hicham? Contei-lhe sobre como nos reencontramos por acaso, contei da
coragem e do sangue-frio de Hicham, de seus modos de cavalheiro e de seu desejo
de se casar comigo. Eles me ouviam com um ar cético. Havia entre nós uma
distância desconhecida.
Minha mãe não queria mais que eu saísse de casa. Mais por medo daquele
novo perigo do que de Bab al-Azizia. Eu tinha de recorrer a subterfúgios para dar a
impressão de que acompanharia papai a algum lugar e então deixá-lo a fim de ver
Hicham, que me forneceu uma reserva de cigarros e um chip novo para o meu telefone celular. Assim, Amal G. e Mabruka não poderiam mais me encontrar. Em casa, o clima era tenso. Eu sofria por não poder fumar e, às vezes, me escondia no banheiro para dar umas tragadas, borrifando desodorante para tirar o cheiro. Eu não tinha assunto com eles. E me encontrava em um estado de suspensão.Certa manhã, bateram à porta. Era um motorista de Bab al-Azizia.
– Vem, Soraya. Sua presença é exigida.
E eu fui. Mabruka, mordaz, levou-me ao laboratório, onde uma enfermeira me
fez três coletas de sangue, enchendo três frascos. Fiquei esperando por uma hora
em uma salinha, até que Salma, de cara amarrada, gritou:
– Pra cima!
O Guia me esperava, de conjunto esportivo e camiseta regata.
– Sua vadia! Fiquei sabendo que você andou transando com outros – e cuspiu
no meu rosto, me penetrou, urinou em cima de mim e concluiu: – Só tenho uma
solução pra você: vai trabalhar sob meu comando. Dormirá na sua casa, mas das
nove da manhã às nove da noite eu quero você aqui, à minha disposição. Agora
você vai aprender a disciplina das guardas revolucionárias.
VOCÊ ESTÁ LENDO
No Harém De Kadafi
Mystery / ThrillerA história real de uma das jovens presas do ditador da Líbia.