O dr. Faisal Krekshi jamais poderia imaginar o que descobriu no fim de agosto de
2011, ao assumir, com um grupo de rebeldes, o controle da Universidade de Trípoli.
Formado na Itália e no Royal College, em Londres, o calmo e ponderado professor
e ginecologista de cinquenta e cinco anos não ignorava a corrupção do sistema
universitário, as redes de sobrevivência e de delação evidenciadas pelos Comitês
Revolucionários, o imenso instrumental de propaganda em que se constituíam as
diferentes faculdades. Ele sabia quanto se mantinha viva na população a lembrança
dos enforcamentos públicos de estudantes em 1977 e 1984 e tinha ciência da
impossibilidade de se visar a uma carreira universitária sem prometer lealdade
total ao regime. Por isso, não se espantou ao descobrir, ao fim de uma intensa
noite de batalha no campus, uma prisão improvisada em contêineres, um escritório
do temido chefe dos serviços de inteligência, Abdullah Senussi, assim como gavetas
abarrotadas de informações sobre dezenas de estudantes e professores, com uma
lista de pessoas a ser executadas. Mas o que ele encontrou por acaso ao explorar
os recônditos da universidade em busca de eventuais franco-atiradores e ao forçar
as portas de um cômodo secreto, situado debaixo do "auditório verde", onde
Muamar Kadafi adorava realizar conferências, estava muito além de suas piores
suspeitas.
Um saguão conduzia a um vasto salão de recepção repleto de estofados de
couro escuro. Em seguida, um corredor levava a um quarto sem janelas, todo
revestido de madeira. Havia ali uma grande cama de casal, arrumada e com
edredom. A seus pés estavam dispostos tapetes baratos com motivos florais, e na
cabeceira havia dois criados-mudos com pequenas luminárias de cujas lâmpadas
vinha uma luz alaranjada. Anexo ao quarto, havia ainda um enorme banheiro com
chuveiro, vaso, bidê e uma jacuzzi com torneiras douradas. Para um edifício
destinado ao estudo e ao ensino do Livro verde, aquilo era estranho e mais parecia
um quarto de motel. Mas foi o cômodo seguinte que realmente espantou os
visitantes e me fez gelar quando pude explorar o local. De frente para o quarto,
uma porta se abria para uma sala de exames ginecológicos perfeitamente
equipada – cama com estribo, projetor, equipamento de radiografia, instrumentos,
instruções de uso em inglês e plastificadas. Por mais que tentasse se mostrar
contido, o dr. Krekshi não conseguia esconder seu desgosto.
– Como não ficar chocado e desorientado com aquilo? – pergunta-me o
renomado especialista, nomeado reitor da universidade após a revolução. – Nada,
absolutamente nada podia justificar aquelas instalações. Se fosse por receio de
uma urgência, o centro de obstetrícia e ginecologia do hospital se encontrava a
menos de cem metros dali. Então por quê? Que práticas ilegais e perversas teriam
sido realizadas naquele local, distante de todos os olhares? Posso vislumbrar duas
possibilidades: interrupções de gestação e reconstruções de hímen, ambas
proibidas na Líbia. E, sem pronunciar a palavra "estupro", sou levado a imaginar
uma conduta sexual perturbadora.
Ele falava com voz grave, medindo cada palavra, e ciente da monstruosidade
de sua descoberta. Ele próprio me confessou ter sido o ginecologista das duas
filhas de Kadafi, Aisha e Hana.
– O que vi ali me deixa numa situação estranha – reconheceu com um triste
sorriso. – A família Kadafi reconhecia minha competência, e eu não pedia nada em
troca. Algumas vezes, as filhas chegaram a falar do espanto do pai em relação a
mim. "Ele não pede um carro? Uma casa?" Não, eu não queria nada. Nada vezes
nada!
Ele sabia do apetite de Muamar Kadafi por meninas novas. Ouvira falar do que
ele chamava de "toque mágico", quando o Guia colocava a mão na cabeça de suas
escolhidas, indicando-as assim a suas guarda-costas. E o dr. Krekshi, que ensinava
planejamento familiar e anualmente dedicava um curso ao tema "tabu", reconhecia
que os hábitos sexuais de Kadafi se erguiam como o maior dos tabus. Ninguém se
arriscaria a tocar no assunto, a advertir as estudantes, a montar um sistema de
segurança. Era preferível não saber de nada. Quanto às vítimas do predador, o que
podiam fazer era se calar e deixar discretamente a universidade. Seria impossível
ter uma estimativa de seu número – das que foram convidadas a Bab al-Azizia e
das que foram conduzidas à suíte presidencial camuflada sob o anfiteatro. No dia
de sua descoberta macabra, o dr. Krekshi disse-me ter encontrado no cômodo "oito
ou nove" DVDs contendo imagens de agressões sexuais perpetradas pelo Guia. Mas
confessou tê-los destruído. Fiquei pasma. Destruído? Não configurariam provas que,
como tais, teriam de ser conservadas?
– Reflita sobre a situação. Ainda estávamos em guerra. Eu não tinha como ter
certeza de que aqueles registros não cairiam em mãos irresponsáveis ou nefastas.
Que não fariam deles objeto de pressões ou chantagem. Minha maior preocupação
era proteger as garotas.
Uma reação estranha. Uma pesada responsabilidade. Não caberia à Justiça
tomar aquela decisão?
A revelação da existência de um cômodo secreto no coração da universidade
provocou um choque no campus. Mas nem por isso as línguas se soltaram. Podia-se
difamar o ditador, pisotear alegremente as efígies com sua imagem em capachos
na entrada das salas de aula, dando voz à própria repulsa. No entanto, o estupro
das estudantes era algo que todos queriam ver bem longe, e um jovem a quem eu
encarregara de sondar o assunto junto a alguns alunos logo me retornou a seguinte
mensagem: "Desisto. É tabu". A mesma coisa de sempre. É evidente que havia
testemunhas, pessoas que notaram elementos suspeitos ou ouviram falar de
jovens assediadas. E não haveria ninguém disposto a denunciar o sistema?
O jovem redator-chefe do jornal semanal Libya Al Jadida me pareceu ser o
único determinado a quebrar o silêncio.
– Eu tinha uma amiga, de uma família de origem camponesa da região de
Azizia, que viera estudar medicina em Trípoli – contou-me ele. – Em uma visita à
universidade, Kadafi passou a mão na cabeça dela, e no dia seguinte as guardacostas foram à casa dela avisar que o Guia a escolhera para ser guarda
revolucionária. A família recusou, e então passaram a ameaçar seu irmão. A garota
aceitou encontrar o Guia, foi violentada, mantida em cativeiro durante uma semana
e depois solta com um maço de dinheiro. Seus pais se sentiram humilhados demais
para recebê-la de volta. Retornar à universidade estava fora de questão. Ela estava
perdida. Hoje, oficialmente ela trabalha com venda de carros. Mas eu sei que na
verdade vive do comércio de seu corpo.
Com a pele clara, cabelos longos e cacheados caindo-lhe nos ombros e a fala
bem articulada, Nisreen não se deixava perturbar. Criada na Líbia, no seio de uma
família burguesa com um dos pais europeu, ela sabia que lhe seria impossível
sobreviver no ambiente opressivo e hipócrita do regime de Kadafi e que sua
realização dependeria necessariamente de estudos no exterior.
– Estávamos longe de imaginar as circunstâncias dos estupros – disse-me ela
uma noite –, ainda que as festanças dos filhos do Guia e de seu bando fossem
conhecidas de todos. No entanto, todas as moças cedo ou tarde seriam
confrontadas com a corrupção sexual. Mulheres enviadas por Bab al-Azizia
cruzavam o campus, plantavam-se nos banheiros, onde as garotas tranquilamente
retocavam a maquiagem, se intrometiam em conversas e logo faziam propostas,
inclusive financeiras.
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No Harém De Kadafi
Mystère / ThrillerA história real de uma das jovens presas do ditador da Líbia.