8 Fuga

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  No dia seguinte, um motorista de Bab al-Azizia buzinava na frente da casa dos
meus pais, às oito e meia em ponto. Então fui para o trabalho. Não sabia como
seria, mas esperava simplesmente não ter mais contato com o Guia. O que poderia
fazer uma "guarda revolucionária"? De que modo eu defenderia a "Revolução"?
Logo tive a resposta: servindo bebidas, o dia todo, aos convidados africanos do
Guia! Eu ficava na mesma casa, com as mesmas pessoas e sob o comando da
mesma chefe. E às três horas da manhã eu ainda estava lá.
– Não foi isso que o Guia me disse – reclamei a Mabruka.
– Mas é aqui que você vai passar a noite.
Só que eu já não tinha quarto. Uma "novata" tomara meu lugar. Então me
preparei para dormir, como se estivesse de passagem, em um sofá na sala. E,
assim que os últimos africanos partiram, fui chamada com a garota nova ao andar
do Guia. Não, ali não havia nada de revolucionário. Eu caíra numa armadilha.
Telefonei às escondidas para o meu pai no dia seguinte. A conversa foi breve, e
senti que ele estava tenso.
– Soraya, é importante. Venha me ver o mais rápido possível e traga seu
passaporte.
Eu estava com ele! Era inacreditável, mas meu passaporte estava comigo, por
um descuido de Mabruka ao voltarmos da viagem pela África. Inventei que tinha
um assunto urgente a resolver como pretexto para sair de Bab al-Azizia com um
motorista. Pedi que me esperasse um momento e peguei um táxi para encontrar
papai, que me aguardava em seu carro. Ele arrancou e me levou à embaixada da
França, onde solicitou um pedido de visto em caráter de urgência; eram
necessárias uma foto e minhas impressões digitais. Com um pouco de sorte e uma
antiga amizade de meu pai com um funcionário da embaixada, nos asseguraram
que o visto seria expedido em uma semana, e não em um mês, como de costume.
Menos de uma hora depois, após ter pegado vielas, evitado as grandes avenidas e
olhado mil vezes pelo retrovisor, papai me colocou num táxi que me levou de volta
ao motorista, e logo eu estava mais uma vez em Bab al-Azizia.
No dia seguinte, lá estava eu de novo no papel de garçonete. A casa estava
cheia de famosos, alguns verdadeiras estrelas, como vim a saber: um diretor de
cinema e um cantor egípcios, uma cantora libanesa, dançarinas e apresentadores
d e TV. O Guia saiu de seu escritório para se juntar a eles no grande salão,
sentando-se no meio de todos. Depois subiu para o quarto. Vários deles o
seguiram, um após o outro. Uma Samsonite bem cheia aguardava alguns deles
antes de partirem.
Pude voltar à casa de meus pais, mas logo entendi que ali eu não tinha mais
espaço. Era uma estrangeira. Um mau exemplo para todo mundo. Mamãe, cada
vez mais distante, ficava a maior parte do tempo em Sirte, com minha irmã e meu
irmão mais novo. Os dois mais velhos tinham ido estudar fora do país. Em Trípoli,
estavam morando apenas meu pai e meus outros dois irmãos. Mas não deu mais.
Foi um verdadeiro desastre.
– O que vai ser da sua vida? – perguntava papai. – Que exemplo você pode dar
para os seus irmãos e para o resto da família?
Era tudo bem mais simples quando não me viam. Morta, eu seria uma vergonha
menor. Até que me dei conta de algo inconcebível: eu preferia voltar a Bab alAzizia.
De volta ao laboratório. Coleta de sangue. Cama improvisada na sala, à espera
de um chamado no meio da noite. Então, papai me telefonou.
– Prepare-se. Em quatro dias você vai estar com o visto para a França.
Em seguida, munida de coragem, fui confrontar Kadafi.
– Minha mãe está muito doente. Preciso de uma dispensa de vinte dias.
Ele me deu duas semanas. Voltei para casa. Mas que clima! Eu me escondia
para fumar e ligar para Hicham, deixando todos furiosos. Menti, inventando que
fora chamada em Bab al-Azizia, e fui encontrar meu namorado. Eu sabia que aquilo
era grave, que eu estava me corrompendo, mas um pouco mais, um pouco
menos... Toda minha vida saíra dos trilhos havia muito tempo. A mentira se tornara
uma forma de sobrevivência.
Passei dois dias com Hicham em um bangalô emprestado por um amigo.
– Eu te amo – ele me dizia. – Você não pode partir assim.
– É a única solução. Não posso mais viver na Líbia. Bab al-Azizia nunca me
deixará em paz, e minha família me vê como uma espécie de monstro. Pra você, só
vou trazer problemas.
– Espera um pouco, logo poderemos ir juntos para o exterior.
– Não. Aqui sou perseguida e coloco você em risco. Ir embora é minha única
esperança de fazer Kadafi me esquecer.
Voltei para casa para fazer a mala. Andava como uma sonâmbula, indiferente a
tudo que se passava à minha volta. Tinham me dito que fevereiro era mês de frio
rigoroso na França, eu precisaria de sapatos reforçados e um casaco bem quente.
Em um armário, descobri um estoque de roupas que minha mãe comprava para
mim sempre que ia à Tunísia. "É para Soraya", dizia a meu pai. "Este ano ela volta,
tenho certeza." Mamãe... Depois de cinco anos ela ainda esperava meu retorno.
Durante o dia, ela enfrentava perguntas invasivas e segurava a família com mão de
ferro. À noite, chorava e pedia a Deus que protegesse sua menina e a trouxesse de
volta. Mas eu não era mais uma menina e a decepcionara.
Papai me acordou muito cedo. Estava pálido. Ou melhor, verde, com os lábios
embranquecidos. Nunca o tinha visto daquele jeito, morto de medo. Passou gel e
penteou os cabelos para trás. Usava um sobretudo escuro que eu não conhecia por
cima de uma jaqueta de couro. Os óculos escuros completavam o visual de
gângster ou de espião. Rapidamente vesti uma calça jeans, uma blusa e envolvi os
cabelos num véu negro, sem esquecer, claro, os grandes óculos de sol, que
encobriam meu rosto. Liguei para mamãe, que estava em Sirte, para me despedir.
Foi uma conversa breve e seca. Depois pegamos um táxi para o aeroporto. Papai
me lançava olhares nervosos.
– O que você tem, Soraya? Parece perturbada.
Ah, não, eu não estava perturbada. Estava calma. O que poderia me acontecer
de mais grave do que já havia acontecido? Ser morta? No fundo, seria um alívio.
No aeroporto, papai ficou à espreita. Olhava no relógio, estremecia se alguém
encostasse nele. Ele pedira a um amigo que cuidasse para que meu nome não
aparecesse na lista de passageiros. Nem mesmo minhas iniciais. Certificou-se
disso. No momento de passar pelos seguranças, e depois, na sala de espera, dava
olhadelas furtivas em volta, suspeitando que cada passageiro sozinho pudesse ser
um capanga de Kadafi. Estava em um filme de espionagem. No avião, até o
momento da decolagem, ele supervisionou a entrada, incapaz de pronunciar uma
única palavra. Respirava ofegante, a boca estava seca. E suas mãos permaneceram apertadas no braço da poltrona até a escala em Roma. Como se uma ordem do

Guia pudesse fazer o avião retornar. No momento da aterrissagem, ele enfim

sorriu. Pela primeira vez, como admitiu, em muitos anos.
Ele optara pela escala em Roma com o intuito de apagar qualquer pista.
Tínhamos ainda algumas horas de espera, e fui ao banheiro tirar o véu negro,
passar lápis nos olhos, gloss rosa e perfume. Afinal de contas, íamos a Paris, a
capital da beleza e da moda. Minha vida miserável acabara. Pelo menos eu achava.

No Harém De KadafiOnde histórias criam vida. Descubra agora