- Anabel? - Estranhou Julia.
Mistério! Ela tinha uma cara assustada. Diziam que a pobre menina sofria de arritmia cardíaca por causa da insônia, ou talvez fosse o contrário. De qualquer forma, tinha aquela cara de assustada sempre. Anabel não demorou:
- Já estou indo. Só mais alguns minutos. Fiquei aqui e nem lembrei que já tinha passado da hora do almoço, não é? Estou indo logo atrás de você - Ana falava enquanto guardava de volta o bloco de papel onde havia anotado umas seis linhas.
- O que quer dizer com almoço? Já são vinte horas.
- O quê? Está falando sério?
- Sim, sim. Olhe o relógio. Apenas olhe o relógio e confirme o que eu digo!
- Não acredito! Agora mesmo acabei de vir pra cá - na verdade Ana não olhou relógio nenhum, pois ainda não entendia a linguagem dos relógios de ponteiro. Sabia que era tarde por que já estava escuro.
- Então você deve ser mesmo muito desligada! Se vai me perguntar como algo assim aconteceu, eu é que não sei. Mas é fato que passou o dia todo aqui em cima e vai ficar sem jantar hoje.
- Mas não tive culpa! Eu juro! Eu não sei o que está acontecendo!
- Não sei o que fazer - lamentou Julia. - Podemos tentar um lanche, né. Mas terá que ser um lanche bem rápido, antes que a Teles desconfie que ainda esteja por aqui, ouviu? Vamos descer logo.
Ana coçou atrás da orelha.
- Hmm. É.
A despensa ficava no porão. Era um lugar com eterno cheiro de desodorantes para privada, misturado com bolacha recheada de morango. Quase nunca desciam lá à noite. Julia puxou um banquinho e sentou-se de frente para ela, arqueada, apoiando os cotovelos sobre as coxas com uma das mãos no queixo. Estava meio quente naquela noite, e uma única lâmpada iluminava o rosto arisco da criatura comendo. Anabel não gostava muito de descer ali, foi o que passou brevemente em seus pensamentos ao notar a sombra grande que sua acompanhante criara na parede úmida e sem reboco, atrás de si, mas agora a fome era maior que qualquer outro sentido. Notava-se a impaciência de Julia, apesar do cansaço em sua cara sonolenta e bocejos. Não esperava que Ana fosse realmente querer um lanche completo, mas ela parecia querer acabar com o estoque da casa.
- Hm, biscoito!
- Foi por causa de Judite que eu vim te procurar, ela lembrou que você havia sumido, ficou falando o dia todo - disse a menina, apressadamente, na esperança de que Ana entendesse que o fato de ela estar falando rápido também podia significar "comer logo".
- Ana, você poderia ser mais rápida?
- Hmmm, estou acabando! - Anabel colocava na boca a maior quantidade possível de bolachas e pedaços de requeijão que conseguia. Não foi suficiente para saciá-la. - Veja, waffle! É uma tristeza quando comem todos os de chocolate. Odeio de limão, tome! Aproveite!
- Não. Prefiro outra coisa.
- Eu sei o que é - sorriu Ana.
- Não sabe não!
- Sei sim. Eu sei onde você esconde as jujubas. Já te descobriram! E você ainda coloca a culpa nos camundongos.
Julia ficou vermelha.
- Podemos ir agora?
- É, acho melhor irmos antes que mais alguém apareça.
Terminado o lanche escondido na despensa, as duas magricelas seguiram em silêncio pelo corredor escuro, ainda que seus pés provocassem barulhos de rangidos diversos nos tacos soltos do assoalho. Julia se esforçou para não ser notada ao girar a chave na fechadura (ela era a mais velha e responsável por isso, mas Ana sabia onde aquela chave era escondida), pois todas as outras já estavam dormindo. Antes ainda cochicharam algo sobre a Srta. Teles e Anabel descobriu que a mulher passara boa parte do dia trancada no escritório. Outra estranheza.
- Agora seremos só nós e ela - Murmurou Julia, com aquela cara de susto.
- A arvore? Aquela árvore ainda?
- De amanhã não passará, ela falou novamente. Estamos fritas!
- Huum - Ana ainda pensava no que havia acontecido. Em outros anos a única coisa a passar por sua cabeça seria se esconder em algum lugar, mas depois de ficar um dia inteiro sumida já iria levantar desconfianças.
- É apenas sua mania de sonhar demais, não é? Principalmente quando está acordada - disse Julia, praticamente lendo os pensamentos dela. - Eu também queria muito poder sonhar mais, como você.
- Julia, eu não tenho sonhos como os seus. Você sonha com garotos e...
- Boa noite.
É claro que Ana queria sonhar, mas ficara muito intrigada com o real motivo de seu esquecimento repentino das horas, sua distração absurda. Não era só distração, não podia ser! A sensação de ter deixado o tempo escorrer por entre seus dedos era obvia, claro. Pelo barulho que os mosquitos faziam, aquela noite ia ser longa, e para neutralizá-los, o jeito era se enrolar da cabeça aos pés. Pela claridade entrando através da janela, a luz da lua iluminava todo o quarto, quando a garota deitou, e ela estava enorme naquele momento. Ana sentiu-se espionada por aquela imagem, e virou-se para o outro lado. Sonhou algo estranho, uma lua azul, mas não por muito tempo. Ao acordar, percebeu que ainda era noite. Claro que sonhou novamente, mas desta vez Judite fazia parte da historia. Um pesadelo! E de pesadelos Anabel estava farta, era impossível não ter ao menos uns sete por semana, trinta por mês, incluindo nos feriados. Fora os roncos de Catarine, e os ataques dos mosquitos mais destemidos, tudo parecia em paz. Por fim amanheceu novamente, como de costume. O sol sempre insiste em voltar...
zzzz
- Vamos dorminhocas, acordem, já são sete horas e cinco segundos! Não quero ver ninguém dormindo!
- Tenha piedade, senhora - disse Anabel, na hora em que a Srta. Teles abriu a janela e o sol iluminou seu rosto. Quando ela fazia aquilo, Ana sentia a sutil vontade de emitir um palavrão, diariamente. Mas não devia ainda. Não até que pudesse colocar a culpa na puberdade.
- Meninas, Claudia, já sabem o caminho. E Ana, após o café vá direto ao meu quarto.
- Lá vem história - pensou a garota. Era quase certeza que Julia já houvesse espalhado o estranho branco do dia anterior. - Julia, por que não ficou quieta?!
- Quando vamos sair, mãe? Quando vamos sair como no ano passado? - perguntou Claudia, a única dentre todas ali que chamava Teles de "mãe".
- Não sei, a van está sem gasolina e os pneus ainda estão carecas. Além disso minha carteira de motorista expira daqui a duas semanas. - a mulher falava rápido, enquanto amarrava o avental na cintura e era fitada com um olhar decepcionado, apesar de sonolento. - Não é uma boa hora, é uma despesa grande. Nunca posso sair com todas, não cabem, e se eu sair com umas as outras reclamam. Se acontecer um passeio, provavelmente será após as essas festas de fim de ano. Não, não faça essa cara! É hora de aproveitar para deixar tudo em ordem aqui, Não temos que deixar para amanhã o que era para ter sido feito ontem.
As duas não perceberam quando Ana saiu. Agora a pequenina contemplava seu rosto no espelho do banheiro novamente, escovando os dentes. Estava um pouco irritada naquela manhã, não pelo fato de terem pegado sua escova (provavelmente Judite) e deixado no chão, e nem por ter esquecido tudo no dia anterior. Estava assim por não ser exatamente alguém que ela desejava ser; pela primeira vez em bastante tempo, acabou pensando em seus pais, aqueles dois seres os quais queria encontrar, mas que não lhe davam noticia de paradeiro ou de vida. A única coisa revelada sobre os dois é que a haviam entregado aos cuidados da Srta. Teles, junto com alguns pertences, e que voltariam em breve. Talvez não por abandono, mas sim necessidade. Teles não parecia se importar muito, muitas ali também tinham uma história parecida, outras Teles nem tinha coragem de dizer como encontrou. Não queria que traumas viessem à tona, já bastavam os pesadelos e fobias que se faziam perceber como possíveis sequelas. Teles deixava claro que fazia dali um mundo à parte. Talvez um pouco menos cruel do que tudo o que havia do lado de fora. O porquê disso Anabel não sabia, aliás, nem mesmo os nomes de seus pais sabia...
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O Sagitário De Samech
FantasyEnquanto monstros antigos são evocados, espectros malignos fogem, bruxas cruéis surgem e magos poderosos tentam se esconder, Anabel está apenas se preparando para o Natal, e suas maiores preocupações são: o que irá comer na ceia, e qual desculpa usa...