2 - A Casa Azul

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- Perdoe-me, Este é o seu travesseiro novo – disse uma pirralha rechonchuda e sorridente, cujo nome era Marta. - Estão apresentados! Espero que não espirre muito, pois ele ficou guardado durante uns cinco anos. De qualquer forma, sabíamos que o seu antigo depósito de ácaros estava em pior estado, então nem precisa agradecer!

- Hmm - Ana não percebeu quem havia dito aquilo, e pouco importava agora. Todas as quinze garotas da casa azul alojavam-se ali no mesmo salão-dormitório, mas Ana era aquela cuja cama se encontrava sob a janela e sempre teve sono leve e dificuldade de dormir em noites de tanto de calor quanto de trovões. Délhi? Anabel entendeu que definitivamente não estava na Índia, não se chamava Eva e não tinha amigos. Tudo, absolutamente tudo, havia sido um sonho. E que a agradava muito mais que a realidade.



- Vamos, senão já sabem: lavabo! – disse Teles com uma certa rispidez, e seu grito tornou Ana mais alerta, ainda que de forma irritada. Enfim ela parou de ir e vir e caminhou definitivamente para fora do quarto, levando as pirralhas junto, criando uma percussão digna de um sapateador bêbado sobre o assoalho recém-encerado. Em épocas como aquela era melhor não discutir muito com a asmática dona da casa e "Lavabo" não era nada referido a banheiro; significava o simples e maravilhoso exercício de passar o resto do dia lavando ou encerando coisas que outras pessoas haviam sujado, sendo que quantidade dos objetos ou lugares era de livre escolha das "irmãs" do orfanato. Aquilo não significava ser liberada de outras tarefas, muito pelo contrário. Era "trabalho fedido" como dizia uma certa pessoa que morava ali. Como não estava nem um pouco interessada em esperar a própria sorte, Ana apressou-se para entrar no banheiro.

O EPITÁFIO DE ELZA

Enquanto acabava de remover o chiclete (podia não parecer naquele momento, mas seus cabelos eram cacheados e tinham uma coloração castanha), contemplou sua expressão de sono ao parar em frente ao espelho do pequeno e velho armário embutido na parede, e pegou sua escova de dente. Só desviou o olhar em duas oportunidades: primeiro quando notou que a pilha de roupas da cesta de roupas sujas, ao lado da privada, devia ter uns dois metros naquele momento, ultrapassando e muito o recipiente em altura. E depois quando descobriu que Infelizmente acabaram matando a pobre Elza, a barata à qual Anabel batizara duas semanas antes. Não se tratava de um ser mal educado, em hipótese alguma. Elza respeitava os horários da casa e sempre surgia de madrugada, adorava recheios de chocolate e balas. Agora seu corpo jazia sobre o ralo, sem vida, com as patinhas para cima. Se as baratas possuem um paraíso para irem, Elza com certeza estaria lá. "Uma barata bem comportada" pensou. Se Ana pudesse se comunicar com ela, avisaria sobre o perigo de andar durante o dia naquele banheiro traiçoeiro. Mas não se pode alegar nada, já que a fome pode ter batido no pobre bichinho, obrigando-o a sair para a morte. Garotas medrosas e cruéis. Após lamentar a cena, a menina concluiu que aquela poderia talvez não ser Elza. Sim, havia uma possibilidade. Por fim Ana encarou-se no espelho, e aos seus grandes olhos pretos e seu olhar fixo e sempre displicente. Era uma característica bastante peculiar, Ana sabia. Seus traços não eram nem remotamente semelhantes aos de alguma outra menina daquela casa, e por conta disso, no passado ficavam lhe enchendo com a irritante frase "você não é daqui deste planeta mesmo". Aqueles pelinhos engraçados na testa estavam ali, bem como aquele pequenino nariz e suas famosas bochechas que costumavam ser tão apertadas (ou beliscadas) por Teles que acabaram emagrecendo com o tempo. O que esgotava suas ultimas esperanças de ser a jovem do sonho.



As quinze garotas finalmente aglomeraram-se para entrar na sala de jantar antes que Teles abrisse a porta. Ela dizia que aquele seria um dia especial, e a mulher chamada Zelda Dipp iria lá para visita-las. Zelda, roliça Zelda. A referida senhora era alguém que Anabel achava misteriosa, por causa de exóticos penteados e roupas com cheiro de naftalina; gostava muito de levar presentes, principalmente roupas que nunca cabiam em suas supostas futuras donas. "Zeldoca", como Teles gostava de chamar, era uma assistente social roliça e devoradora de torradas de milho que aparecia sempre no Natal. Sim, ela era muito esperta e muito ligada a festas de fim de ano, por isso adorava ir até a casa azul, não para ver como estavam as vidas das pequenas, mas comer das variadas comidas natalinas que elas preparavam enquanto podia dar boas risadas com sua grande amiga.

O Sagitário De SamechOnde histórias criam vida. Descubra agora