Capítulo 6

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A música alta era fácil de ser reconhecida, "Boys" da Charli XCX, e quando avistei Vitória ela dançava de uma maneira incrivelmente estonteante. Ela estava de costas para mim, rebolando no mesmo ritmo das batidas da música, e tive que respirar fundo antes de me aproximar dela no balcão.

"Você vem sempre aqui?" Usei a, provavelmente, cantada mais usada em toda a história da humanidade com um pouco de humor, fingindo estar paquerando ela -não que eu não estivesse, de certa forma-. 

Ela me olhou e sorriu aquele sorriso sol, que fez as borboletas em meu estômago ficarem alvoraçadas. Sorri de volta, me enxergando nos olhos cor-de-tudo. Ou talvez a bebida estivesse fazendo com que eu me enxergasse em Vitória, como se quisesse que estivéssemos junto.

"Só quando você vem."  Ela respondeu no mesmo tom, pegando duas cervejas das mãos do rapaz que a encarava como se Vitória fosse uma presa fácil. Ela deu o dinheiro e simplesmente se virou de costas para ele, acenando para que saíssemos do meio daquele fluxo de pessoas meio dançando meio tropeçando. 

"Não sabia que você cantava tão bem." Puxei a cadeira de uma mesa aleatória para ela, cortando nosso caminho de volta para a mesa de Manuela e Luana. Ela me encarou por um segundo antes de sentar e eu a acompanhei.  Eu estava sorrindo sem nem mesmo perceber, e podia jurar que o motivo era Vitória me encarando com aqueles olhos e aquele sorriso frouxo nos lábios vermelhos.

"Eu canto desde lá em Araguaína." Ela disse abrindo as duas cervejas e me entregando uma, que decidi beber mais lentamente. De repente já não queria mais estar bêbada, queria poder encará-la sem que minha visão ficasse turva, ou sorrir pra ela sem que meu sorriso saísse torto."E tu? Parou de cantar depois do festival da escola?" 

A pergunta com certeza trouxe alguma sobriedade. Era engraçado como Araguaína talvez nunca saísse do meu sangue, como na grande e ilusória São Paulo alguém do meu interior me encontrasse e soubesse quase tanto da minha vida como eu mesma. Sorri sem graça e tomei um longo gole.

"Eu nem contava nessa época; foi uma aposta que eu perdi e precisei cumprir." Dei de ombros, sentindo os olhos dela queimarem sobre mim.

"E o que a doutora anda fazendo perdida nos bares de sampa?" O modo como ela falou, o sotaque carregado de humor, tudo em Vitória me lembrava casa.

A gente tinha sido conexão, era coisa de alma porque eu acreditava muito nisso. O mundo devolve pra gente tudo que a gente dá pra ele, e eu não conseguia entender o que eu tinha dado pra ganhar a companhia de Vitória como recompensa.

"Acho que eu tava meio perdida, e quando percebi tava ali, ouvindo a melhor voz que já ouvi na vida." Ela sorriu com minhas palavras e meu coração acelerou como se fosse sair correndo. 

Ela ai falar alguma coisa quando as luzes do bar tomaram uma nuance mais baixa, e a música mudou completamente o ritmo. "Só Hoje", do Jota Quest começou e ela me encarou sugestiva.

"Tu aceita dançar comigo, morena?" Aquelas palavras, além de me tirar do chão por uns bons milésimos de segundo, encheram meu coração apressado de calma e calor. Assenti e deixei que ela segurasse minha mão, me levando para o meio das pessoas que dançavam na pequena pista de dança.

Suas mãos desceram para minha cintura lentamente, passando por toda a lateral do meu corpo e me arrepiando. Minhas mãos estavam em seus ombros, a proximidade me causava calafrios e me deixava nervosa.Eu já não estava tão bêbada como quando a vi subir no palco ou quando tinha ido atrás dela, e isso me deixava ainda mais nervosa.

Dávamos pequenos passos indo de um lado para o outro, e em uma fração de segundos me aproximei mais dela, sentindo as mãos ficarem mais firmes em minha cintura. Nossos narizes se esbarravam todas as vezes que nos movíamos para trás e ela sorriu olhando nos meus olhos. Eu tinha certeza de que ela enxergava minha alma todas as vezes em que o fazia e isso me assustava.

Ficamos o tempo todo em um silêncio confortável, porque acho que nenhuma de nós duas tinha alguma palavra para dizer naquele momento e estava tudo bem.

Quando a música estava nos últimos versos, Vitória me pegou pela mão e me fez girar, me segurando novamente no fim do passo que ela tinha feito, nos fazendo gargalhar alto. Vitória era de sorrisos fáceis, e de uma convivência mais fácil ainda, e isso me incomodou quando percebi que ainda não conhecia seus enigmas e mistérios.

Eu queria desesperadamente beijar aqueles lábios que estavam tão próximos dos meus, queria sentir o gosto dos lábios vermelhos. Era como se não tivesse mais ninguém naquele lugar, como tinha acontecido na sala de espera da UTI. Exceto pela batida forte que veio em seguida, com Beyoncé tocando no último volume.

Vitória me chamou para dançar com ela, mas recusei dizendo que não sabia dançar aquele tipo de música, especialmente quando eu podia me sentar e apenas observar enquanto ela se movia e rebolava e fazia todos os tipos de passos de dança que poderiam me enlouquecer. Ela deve ter dançado mais umas duas ou três músicas enquanto me limitei a tomar mais uma cerveja.

Já era tarde quando olhei o relógio e em seguida para a mesa de Luana, vendo minha irmã mais nova conversando com um rapaz alto. Me perdi em como Luana tinha crescido e se tornado independente de mim ou qualquer outra pessoa do nosso passado.

"Tu quer sair daqui?"  Vitória perguntou, me trazendo de volta à realidade dos olhos brilhantes que me encaravam. A frase dita por ela me fez rir de nervoso e de repente eu não soube o que responder. "Falta duas horas pro sol nascer, a gente pode ir pra um lugar que eu gosto muito e ver ele nascer." Ela explicou. Não sei o que deu a entender que eu senti, mas dentro de mim foi um misto de decepção e alegria. Ela ia me levar num lugar que ela gostava, mas era pra ver o sol nascer. 

Então decidi levar em conta que eu queria descobrir enigmas de Vitória Falcão e isso era um bom começo. 

"Vamos sair daqui." Respondi e me deixei ser levada por ela até seu carro.

CHAOSOnde histórias criam vida. Descubra agora