Capítulo 16

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Não era realmente uma cirurgia pela qual o menino estava passando, era uma biópsia de linfonodo sentinela. Eu não tinha feito uma dessas muitas vezes na vida, mas observar o fluido azul em volta de quase todos os gânglios do pescoço do garoto estava me deixando enjoada. As palavras médicas, os termos, as agulhas e as pinças sobre a mesa estavam me deixando tonta pela primeira vez em toda minha vida.

Eu estava cansada e não era fisicamente, a não ser pelo peso imaginário que estava nos meus ombros desde o momento em que Manuela me chamou há mais de um mês atrás. Respirei fundo e me forcei a terminar o procedimento, apesar de já estar óbvio que a leucemia tinha se espalhado para os gânglios do pescoço.

Evitei o quarto de Ana Beatriz e saí pelas portas laterais do refeitório, vazio àquela hora da noite, e segui até meu carro. Fiquei por vários minutos pensando em como eu tinha conseguido chegar até ali arrastando todas aquelas pessoas comigo; começando por Ana Beatriz, depois Vitória e Isabel e agora Lucas e a família dele. mas principalmente Vitória Falcão.

Vi tinha chegado e desde o primeiro momento a desejei, e o desejo virou paixão e eu nem mesmo tinha tentado fugir como fiz todas as outras vezes em que algo bom bateu na minha porta. Não queria machucá-la, não queria ser o motivo da dor que a destruiria e muito menos da Aninha achar que isso era o universo trazendo coisas à ela. Era clínico, médico, natureza humana de ter doenças, causas genéticas ou não.

Mas, eu sabia, essas explicações não lhes serviria para nada quando acontecesse. E eu devia começar a fazer uma lista de "pela primeira vez em minha vida" urgentemente e colocar que pela primeira vez eu também não estava preparada para perder um paciente. Eu sempre estive, sempre acreditei e por isso mesmo sempre dei o meu melhor para salvar todos que eu pudesse e, mesmo quando não conseguia, era porque entendia que eu não estava na condição de mudar a condição humana nem sua natureza.

Perdi a hora em todos os pensamentos que rondavam minha mente e procurei solução para todos eles. Enviar Ana Beatriz para o Rio, onde o médico que eu tinha consultado estava em um estudo clínico para tumores raros em crianças e onde ela teria mais chances. Mas isso levaria Vitória para longe e isso doeria. Eu estava sendo egoísta e sabia disso, sentia isso e todos os meus ossos doíam. 

Merda. Merda. Merda! 

Dirigi rápido por todas as ruas e avenidas que apareciam pouco movimentadas em meus GPS até estacionar na frente da casa de Bárbara e ligar pra ela, pedindo que me deixasse subir, o que ela fez de prontidão. Ela iria tanto entender meu caos quanto me ajudar a resolver.

"Você sabe que do Rio até São Paulo é pouco mais de uma hora de viajam, apenas?" Ela perguntou semicerrando os olhos.

O pijama branco ficava bonito nela e nas curvas do corpo moreno, e ela tomava café em uma xícara grande quando quando se sentou na cama para falar comigo.

Assenti. Eu sabia a distância de muitos lugares para muitos lugares e sabia também que a única distância que eu suportaria ficar longe de Vitória era a distância entre nossos lábios quando parávamos para respirar entre um beijo e outro, ou a distância dos nossos corpos enquanto jogávamos as roupas pelo chão do apartamento dela.

"E você sabe que é completamente absurdo o fato de você estar privando Ana Beatriz de um tratamento melhor."  Me perdi outra vez em pensamentos e deixei que meus olhos observassem todo o quarto lilás, a cama branca e a porta do banheiro aberta. "Tu sabe, não sabe, Ana Clara?"

Ela falou mais séria e eu assenti, estava mais no automático do que vivendo a vida real.

"Ana, eu sei o quanto você gosta da Vitória e da mãe dela, mas isso não é motivo pra prender elas em você mais do que elas já estão." A voz dela voltou a ficar mais serena. Meus olhos estavam cheios de lágrimas outra vez, chorar tinha se tornado algo muito recorrente e eu não gostava da imagem fraca que esse hábito passava de mim.

Eu não sou fraca, nunca tinha sido e esperava não me tornar agora. Mas Vitória tinha meus sentimentos nas mãos e nem sabia disso.

"Eu sei, Babi, eu sei."

"Então você vai dirigir pra casa da Vitória agora e falar com ela."

Tão educada quanto Bárbara sempre foi, ela falou olhando em meus olhos e me passando toda a confiança que eu precisava naquele momento. Porém minhas pernas se recusavam a mover, o pensamento de precisar falar com Vitória ainda não me deixava confortável o suficiente.

"Não é pra ficar aqui vegetando não! "  Minha amiga praticamente gritou. "Tá mais do que não hora de agir feito a mulher que você é, Ana Clara!"

Suspirei. Troquei olhares entre minhas mãos e os olhos que me encaravam. Eu não entendia como e nem porquê era difícil assim, como se fosse me destruir fazer bem a alguém.

Ao contrário da velocidade com a qual eu dirigi para chegar na casa de Bárbara, dirigi como se quisesse evitar chegar na de Vitória. Observei as ruas como nunca antes, o céu sem lua que parecia triste, os faróis que pareciam mais foscos.

Balancei a cabeça me livrando dos pensamentos melancólicos, não era uma sentença de morte nem o fim do mundo. Embora doesse, Vitória estava na minha a muito menos tempo do que a medicina, e entre escolher as duas eu sabia qual direção seguir.

CHAOSOnde histórias criam vida. Descubra agora