Capítulo 1

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Meu plantão já tinha acabado há quase uma hora quando Manuela disse que precisava de uma consulta; não tinha como negar um pedido vindo da pediatria, cuidar das crianças tornava meu dia menos cansativo emocionalmente. 

O caso na minha frente, os exames que ela tinha me dado mostravam um tumor que crescia no lobo frontal da garotinha de 10 anos. Isso com certeza não tornava o resto do meu dia melhor; estar naquele lugar cheio de morte e recomeços era apavorador e gratificante ao mesmo tempo.

Encarei Manuela.

"Eu não disse que seria leve." Ela se defendeu. "O que acha que você pode fazer?" Os olhos castanhos em olhavam em expectativa.

"É um tumor, obviamente, mas preciso de uma espectroscopia e uma biópsia pra ter certeza de que é benigno." Respondi já devolvendo os exames em minhas mãos para minha colega de trabalho. ela ainda me encarava esperando outra resposta. "Conhece a paciente?" Era mais uma pergunta retórica, afinal era possível ver a aflição estampada nos olhos castanhos. "Você sabe  o que ensinaram pra gente, não sabe?" Outra pergunta retórica.

"Ana. O nome dela é Ana Beatriz Falcão." Ela disse de repente. 

"Se eu não me engano, você tem..."

Ela me cortou, emendando a fala:

"Uma afilhada com esse nome." Os olhos dela se encheram de lágrimas e eu não tive a mínima ideia do que fazer. "Ela é a garotinha que falei com você que eu conhecia mesmo antes dela nascer, mesmo antes de ser namorada do irmão dela."

Manuela soou tão desesperada que a única coisa que consegui pensar foi: 'se antes eu já não gostava de saber o nome das crianças antes da cirurgia, agora eu ainda carrego o peso do coração de Manuela junto com esse nome.' 

"Primeiro, é proibido tratarmos família." Eu disse séria e ela assentiu de imediato. "Segundo, eu vou te devolver sua afilhada mil  vezes melhor do que ela entrou aqui." Ela me abraçou, literalmente jogando o peso do seu corpo contra o meu e a abracei de volta. Não que eu gostasse muito de contato humano, tinha aprendido que muita aproximação só causava estrago no fim das contas.

Passei o resto da noite pesquisando e lendo os métodos mais seguros e retirar todo o tumor, porque aquela garotinha estava sofrendo algo que eu não desejaria jamais para alguém. Ela estava sob efeito de analgésicos devido à dor de cabeça, e a visão estava começando a ficar prejudicada por causa da pressão que o tumor fazia na área em que estava localizado. 

Eu precisava de um plano cirúrgico que não deixasse sequelas ou que as minimizasse o máximo possível. As convulsões prejudicavam o cérebro cada vez que aconteciam, e durante o tempo em que a observei no quarto ela tinha tido duas convulsões, uma mais rápida e outra em que achei que a perderia bem na minha frente. 

Os cachos loiros e volumosos da pequena criança que agora dormia encolhida na cama me fizeram pensar sobre todas as belezas que eu tinha conhecido na vida, em como tudo na infância parece simples e o quanto ela devia estar perdendo por conta das convulsões e dores.

Eram quase duas da manhã quando decidi deixar que a mãe e a garotinha descansassem sozinhas, mas pedi que uma enfermeira ficasse de prontidão. Eu estava exausta, meu corpo inteiro parecia estar em estado dormente e meu estômago se revirava em fome. 

"Manuela, consegue agendar a sala de cirurgia para amanhã de manhã?" Perguntei assim que ela me alcançou no enorme corredor, eu estava indo na direção das escadas e ela provavelmente estava aguardando de longe enquanto eu observava Ana Beatriz.

"Não acha que precisamos começar radioterapia antes? Ou quimio?" Ela fez uma lista de incontáveis perguntas,  e precisei respirar fundo. Meu mau humor combinado com meu cansaço não estava ajudando nenhum pouco no meu relacionamento com as pessoas.

"Vou começar deixando bem claro que você não vai participar da cirurgia, e você entende isso completamente se parar para pensar que questionou meu plano cirúrgico duzentas vezes desde o quarto dela até aqui." Respondi tentando soar o mais calma possível, não queria magoar Manuela porque eu sabia exatamente o que era ter um familiar querido numa mesa de cirurgia sem poder fazer nada.

Ela murmurou algo que não fui capaz de entender e em seguida me abraçou outra vez. "Acho que você só precisa dormir um pouco para que não cometa nenhum erro ou..." 

Ela parou de falar assim que encarou meu olho sério. Manuela era legal e tinha sido uma das únicas pessoas e tentar se aproximar de mim sem querer nada em troca quando cheguei aqui, mas ela não sabia controlar a língua quando estava nervosa e isso me estressava, além do fato de ela estar sempre feliz e radiante mesmo lidando com crianças morrendo quase todos os dias.

Me sentei em um dos degraus da escada que levava ao térreo e não me lembro direito quando adormeci ali, a única coisa da qual eu lembrava era de sonhar com mainha outra vez. Esse era um dos principais motivos para "NÃO DORMIR NO HOSPITAL" estar no topo da minha lista de coisas para não fazer.



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