Capítulo 10

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POV VITÓRIA

Aninha precisou ficar a semana toda no hospital a pedido de Ana Clara, porque ela queria observá-la todas os dias e iniciar a quimioterapia ainda naqueles dias. Aninha, que antes acreditava que tinha se tornado um pirata caolho, agora dizia que seria a Carolina Dieckmann quando os cabelos começassem a cair.

Ela, como a criança hiperativa que sempre foi, não tinha ideia do que estava acontecendo naquele momento e porque Ana Clara insistia em passar quase todas as noites deitada ao lado dela. Por outro, isso tinha aproximado muito as duas e meu coração era só alegria quando as via conversando animadas. 

Mamãe ficava entre o trabalho, a casa e o hospital e todo aquele estresse tinha afetado-a de tal forma que Ana Clara decidiu que ela só visitaria Aninha caso se alimentasse em períodos regulares e dormisse regularmente. E a regra se enquadrava a mim também.

Eu tinha passado a observar mais de Ana Clara, como ela mudava de humor, como ela ficava feliz sempre que saía de uma cirurgia bem sucedida e como ela parecia sofrer a dor da família que perdia alguém. A mulher de 26 anos vinha ganhando um pouco de mim sempre que sorria ou corria para o banheiro para chorar, com Bárbara ou Manuela em seu encalço.

"Bom dia pras minhas duas flô!" Eu disse assim que entrei no quarto, Aninha estava encostada sobre os travesseiros e Ninha estava sentada ao lado dela. Aninha tinha emagrecido durante a semana com as sessões que alternavam entre quimio e em seguida radioterapia, e também parecia mais pálida.

Entreguei o copo de café para Ana Clara e ela sorriu agradecendo, fazendo um carinho em minha mão. Não passávamos disso tinha quase duas semanas, tirando as vezes que ela me deixava um selinho antes de ir pra casa nos poucos dias que ela tinha ido lá. Num dia desses eu tinha conhecido Luana, irmã de Ninha e ela era a cara da irmã mais velha, além de ter sido muito legal comigo.

"Aninha tá indo pra quimioterapia, você quer acompanhar ela dessa vez?" Ana me perguntou, sendo acompanhada por um "por favoooor" bem sonoro vindo da minha irmã mais nova.

"Claro que quero. Tu vai também?" Perguntei na esperança de ter mais tempo com ela.

Mas Ana sorriu triste e brincou com os cachos do meu cabelo sem me encarar.

"Eu tenho cirurgia agora, e depois vou ir no Rio pra uma consulta com um especialista de lá sobre o caso dessa princesa aqui." Sorri e assenti completamente frustrada, o que era errado visando que isso era para a melhora da minha irmãzinha. 

Mas eu tinha direito de querer a Ana Clara que tinha me beijado no chão do meu apartamento, e depois no elevador. Tinha direito de querer passar algum tempo com Ana Clara não-médica. Porém, tudo o que eu fiz foi acompanhar Aninha e fazer parte de mais aquilo da vida dela. 

A sala era compartilhada com mais 5 pessoas, e delas apenas Aninha era criança, o que me fez questionar todas as forças possíveis do porquê daquilo. O cérebro das crianças era suposto para ser mais resistente, por que Aninha, então? Queria ter alguém para culpar, para descontar a raiva que me preenchia sempre que eu via Aninha vomitando ou, agora, os pequenos cachos perdendo o volume.

Ela tinha deixado aquele cabelo cor-de-sol crescer por toda a vida, e vê-lo caindo partia meu coração em milhões de pedaços que eu sabia que não seriam juntados outra vez. Não com Ana Clara sempre distante.

Quando voltamos para o quarto, minha irmã já dormia profundamente e com uma máscara de ar para caso ela tivesse dificuldade em respirar. Minha mãe chegou um pouco antes de eu precisar sair para trabalhar e, graças as ordens médicas de Ana Clara, ela estava mais saudável.

"Ela ta dormindo, mainha." Sussurrei na porta do quarto. "Mas a senhora até sabe que ela vai acordar de madrugada e hoje Ana não tá aqui, então..." Parei de falar e procurei Bárbara com os olhos, a encontrando encostada num balcão conversando com Manuela. "A Bárbara, aquela médica ali, vai ficar com vocês." 

Ela assentiu, me abraçou e beijou minha testa antes que eu começasse a andar pelo corredor que me levava à sala de emergência. Era estranho como eu gostava de estar ali, no meio daquele caos de gente indo e vindo, ou outrora o silêncio que emanava dali. Parecia coisa de filme que eu nunca acreditei, mas que agora era quase parte da minha vizinhança. 

Como sempre morei longe tanto do hospital quanto do bar, decidi me arrumar lá mesmo, porque os donos eram amigos meus e de Fábio. Mais de Fábio do que meus, porque eles conheceram meu irmão antes mesmo de mainha adotar o menino quando ela veio pra São Paulo.

Como era sexta feira, o lugar estava quase cheio e isso significava cachê maior, o que viria bem a calhar. Cumprimentei todos que estavam no balcão antes de entrar e me trocar, colocando o vestido preto e arrumando o cabelo. Estava cansada por ter passado o dia com Aninha, por ter passado as últimas duas semanas alternando entre hospital-trabalho-casa e assim dormir pouco. 

Estava com saudade de Ana Clara, dos lábios dela contra os meus, do corpo dela embaixo do meu e dos olhos negros me encarando com desejo. Nunca tinha me sentido tão viva como quando estava com ela e agora parecia como se tivesse sido meses atrás e isso me frustrava. Eu gostava das conversas tarde da noite de quando ela ainda pesquisava um meio de trazer a visão de Aninha de volta, gostava de como ela dormia com o telefone ligado e de como me respondia pela manhã pedindo desculpa. E agora ela estava completamente distante e inalcançável.

Pedi que Flávio começasse diferente dessa vez, eu estava com saudade de Ana Clara que cantaria algo que me lembrasse dela. Ele então tocou a introdução de "Minha felicidade" da Roberta Campos.

Fechei os olhos me lembrando de quando beijei Ana em meu apartamento, me lembrando de ver o sol nascer com ela... Me perdi em pensamentos enquanto cantava e mal percebi que meu irmão começou "All Star" e me assustei ao começar a cantar e ver um rosto conhecido no meio de todas as pessoas.

Continuei contando e seguindo o vulto moreno passar por entre as pessoas e se sentar em uma das mesas no fundo. Ana parecia mais cansada do que o normal e durante todo os tempo em que cantei ela me encarava e desviava o olhar com um sorriso de lado. Ainda vestida com a roupa que eu a tinha visto antes de acompanhar Aninha, o que me fez pensar que ela tinha chegado e ido direto para o bar.

Não vi se ela tinha bebido algo alcoólico além de ver um garçom levando um drink azul pra ela. Tentei tirá-la de meus pensamentos e focar nas músicas, mas logo me vi pedindo que Flávio tocasse "A Noite" da Tiê e cantei olhando diretamente pra ela. Ana estava ali e eu estava ali, nada nos impedia de estarmos juntas agora, não havia nenhum tumor ou hospital entre nós.

E eu queria o abraço, o carinho e o beijo dela. Queria Ana Clara.

CHAOSOnde histórias criam vida. Descubra agora