Capítulo 9

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Ana Beatriz estava deitada na maca, Isabel segurava a mãozinha pequena entre as suas e se levantou imediatamente quando me viu. A mulher mais velha me abraçou forte, me agradecendo por estar ali.

"Desculpa a demora, eu tinha perdido meu celular em algum lugar do..." Não tinha como dizer que eu tinha deixado de atender por querer beijar a filha dela. "do meu apartamento."

Chequei tudo que era necessário, pressão, batimentos, pulmão e pedi uma ressonância magnética do cérebro e olhei várias vezes enquanto Isabel contava como ela tinha caído da escada de 10 degraus na casa do padrasto dela.

"Eu vou ver a ressonância e volta pra falar com a senhora." 

Meu celular vibrou no bolso do meu jaleco e a mensagem de Vitória me fez sorrir.

"Teu cheiro ficou em mim. Tu devia ficar também." 

Meu coração se aqueceu. Sorri até chegar na sala onde Ana Beatriz estava deitada realizando o exame, porque meu sorriso sumiu no exato momento em que encarei a tela. Outra vez.

"Que cara é essa?" 

A voz de Bárbara atrás de mim me assustou num nível que me fez pular e em seguida me virar para ela com a mão sobre o peito.

''Virou assombração, agora?"

Ela continuou me encarando, e alternou o olhar entre meu rosto e a tela atrás de mim.

"Não virei não, mas tu tava parecendo que viu uma."

Suspirei e dei espaço para que a pediatra visse as imagens que mostravam um novo tumor no lobo frontal. Eu queria chorar, queria correr pros braços de Vitória. Vitória. A bonequinha de Vitória. A garotinha que eu não conseguiria salvar.

"Um oligodendroglioma." Ela não tinha nenhuma expressão formada em seu rosto e isso só me assustava ainda mais. Nunca me senti tão mal em toda minha profissão, nunca me senti tão impotente. "Quer que eu fale com a mãe dela enquanto você toma uma água e descansa um pouco? Ainda não é teu plantão, Aninha." 

Ela disse o mais cuidadosa possível, e tudo que fiz foi assentir e correr para o primeiro banheiro que encontrei. Me deixei desfalecer em lágrimas. Minha mãe tinha me deixado por cause de um maldito câncer de mama de que se recusou a nos contar e desde então eu tinha decidido salvar todas as pessoas de qualquer tipo de tumor, e, olhando pra mim agora, me via perdendo todas as esperanças.

Dona Isabel podia perder a filha mais nova, e imaginei Luana sendo tirada de mim tão nova, o quanto isso me destruiria... Meus soluços se tornaram mais altos e perdi a noção de quanto tempo eu tinha ficado ali chorando e imaginando estar no lugar de Vitória, até que alguém bateu delicadamente na porta do banheiro que eu estava.

"Aninha, tu precisa sair daí pra gente traçar o tratamento novo da Ana Beatriz." A voz de Bárbara era baixa e agradeci a todos os deuses do universo por Manuela não estar lá. "Eu já falei com a mãe dela e Vitória tava com ela."

Quase derrubei Bárbara quando abri a porta no instante em que ela parou de falar.

"O que ela disse? Ela está brava comigo? Eu não podia ter contado pra ela quando tava na casa dela e..."

"Tu tava na casa dela?" Bárbara quase gritou para que todo o hospital ouvisse e senti minhas bochechas queimarem.

"Se você gritar um pouco mais alto, a própria Vitória pode vir te contar, se você quiser." Respondi meio sorrindo e ainda com algumas lágrimas molhando meu rosto. Babi sorriu e me puxou pra um abraço, ela era a única peça de Araguaína que eu fiz questão de manter comigo pra sempre. Ela conhecia todos os meus lados e tinha continuado mesmo assim.

 "O tumor é pequeno, muito pequeno." Fiz minha observação pra ela, que ainda tinha todos os exames nas mãos e observava cada milímetro com atenção. A sala de exames estava ocupadas com exames de pacientes que tinha passado pela reincidência do mesmo tumor e nenhum deles tinha menos do que 20 anos, o que tornava ainda mais difícil chegar a uma conclusão.

"Sendo assim, tu não vai conseguir fazer a cirurgia sem que ela corra grande risco." Ela concluiu. 

"Quimio e radio." Falamos no mesmo segundo e um sorriso fraco surgiu nos lábios dela.

Bárbara não saía muito comigo e Manuela, pelo menos em todas as vezes que saí com ela, por isso não tínhamos tanto assunto fora do hospital que não fosse sobre nosso próprio mundo. isso tornava Babi uma pessoa insubstituível na minha vida. Ela estava sempre tentando me fazer sorrir e me deixar bem, e nunca me deixava pensar que ela estava mal.

Preciso ir em casa e trocar essa roupa." Ela assentiu e me deu a chave do seu carro, sabendo que eu tinha vindo pra cá com Vitória.

Antes que eu chegasse na porta, ouvi sua voz outra vez:

"Melhor sair pelo refeitório, Vitória está na sala de espera enquanto Ana Beatriz está dormindo."

Sorri agradecendo e saí.

Chegar em casa foi a parte difícil desde o momento em que encontrei Luana em mais uma crise existencial sobre não ser boa o suficiente pra ninguém, o que me tomou bons minutos. Tive que repetir as velhas frases várias vezes antes que ela se levantasse do chão frio da sala e fosse para o próprio quarto. Vale lembrar que ela estava bêbada e com a roupa do barzinho, o que me fez pensar que ela tinha chegado a pouco tempo.

Subi para o meu quarto e tomei um banho rápido, vestindo a calça jeans e uma camiseta branca. Passei pelo escritório atrás da chave do meu próprio carro e do meu óculos de grau, mas a bagunça me fez levar mais do que alguns minutos para encontrá-lo.

Eu estava terminando de calçar o tênis quando meu celular vibrou e meu estômago embrulhou.

"Tu podia ter me dito antes, furei outro sinal vindo pra cá."  Vitória tinha mandado mensagem, e saber que ela era um perigo no volante me fez sorrir de nervoso.

"Tu tá bem? Sei que Aninha vai ficar bem, ela tem tu e mais um monte pra cuidar dela." A confiança que as palavras dela me passaram me fizeram pensar que ela não estava brava comigo ou decepcionada por não tê-la respondido mais cedo.

Tudo em mim parecia bagunçado agora. Não tinha parado para pensar na minha vida pós Ana Beatriz e Vitória, porque não queria parecer o tipo de pessoa que fica tão fascinada com as pessoas que de repente começa a imaginar uma vida perfeita ao lado delas. Não era o meu tipo de pessoa. Mas, se eu olhasse para dentro de mim agora, e esquecesse todas as aulas sobre anatomia e neurologia, tudo dentro de mim era Vitória Falcão ou parte dela.


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