A creche

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Eu costumo dizer que, aos 19, eu era tão inocente, mas tão inocente, que fui enganado até por tias de creche. E isso é verdade.

Por conta de uma série de fatores confusos, me vi trabalhando numa creche em Praia Grande. Quando entrei, as mulheres que já trabalhavam lá a anos me incubiram de cuidar das crianças mais bagunceiras da sala, sobrando a elas as mais educadas e fáceis.

Das crianças calmas, me sobrou apenas a Lilandra (nome falso), uma menina bem nova que ainda usava chupetas, a razão pela qual fiquei com ela é porque ainda não sabia andar, me forçando a carregá-la para todos os lados com um braço enquanto tentava cuidar de todas as outras com o braço livre. Orgulho-me de ter a ensinado a andar.

Eu não sou a favor da privatização de todas as instituições públicas, mas confesso que devemos repensar a maneira como elas funcionam. Na creche, era uma eterna disputa para saber quem trabalhava menos.

Mais de uma vez as mulheres discutiam aos gritos quem deveria ficar com tal função. As mais experientes, que já tinham todos os macetes, literalmente não trabalhavam.

De nome, lembro apenas das crianças mais bagunceiras. Cristiano (nome falso) era um garoto branquinho de olhos claros que esperava a menor distração para corree e subir nas coisas. Também era difícil de comer, gostava de passar a comida no cabelo.

David (nome falso) era negro, bochechudo e tinha os dentes afiados. Ele sabia disso, gostava de morder as crianças que entravam no seu caminho. Você tinha que ficar atento.

Eliana (nome falso) tinha alguma questão de hiperatividade, apenas corria e gritava sem sentido algum. Quando precisava ficar sentada se incomodava profundamente. Até chorava.

Inocente, demorei algum tempo para entender a sacanagem que fizeram comigo. Tarde demais, já estava apegado às crianças e não queria trocar com outras turmas.

Tem dias que me arrependo de todo o tempo que gastei em empregos absurdos para ganhar uma mixaria. Poderia ter me dedicado mais a escrever ao invés de esperar as madrugadas para isso.

Logo lembro de que não podia me dar a esse luxo. Minha família precisava de mim e os estudos não se pagavam sozinhos.

Às vezes eu me pego imaginando como a minha vida seria se tivesse um pouco mais de privilégios. Se ao invés de vendedor ambulante o meu pai fosse médico ou advogado.

Uma bobagem, é claro. Eu seria completamente diferente e gosto da pessoa que sou agora.

Nós somos o resultado das nossas experiências, a soma de todas as dores que sofremos. Eu sinto que todas as coisas que aprendi sofrendo me serão uteis um dia, os pontos vão se conectar e vou fazer as pazes com o meu passado.

CADERNO DO SALIOnde histórias criam vida. Descubra agora