Temos um problema

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Este texto foi escrito pelo meu amigo Fred Di Giacomo, que está morando na Alemanha. Vale a pena ler.

Nos primeiros dias aqui na Alemanha (pouco depois dos protestos de extrema direita ocorridos na cidade de Chemnitz, onde algumas pessoas que "pareciam" imigrantes foram agredidas no meio da rua), eu estava tranquilamente comendo um kebab, numa rua movimentada, acompanhado da familinha. Benjamin dormia, finalmente, no carrinho e pessoas de diversas etnias aproveitavam o sábado na rua movimentada.

Do nada, um maluco de cabeça raspada passou gritando "Heil Hitler!" e fazendo a saudação nazista. Todo mundo olhou assustado (fazer isso aqui é crime), mas ninguém (re)agiu.

O nazismo (a.k.a. nacional-socialismo) nasceu aqui. Ele ainda é uma realidade, não uma teoria maluca inventada em fóruns de discussão na internet. E nenhuma pessoa séria na Alemanha acusa  neonazistas de serem grupos de esquerda.  Recentemente, a embaixada alemã no Brasil fez um vídeo pra explicar isso. "O nazismo é de direita" era o resumo da obra. "Nunca ouvi uma voz séria na Alemanha argumentando que o nacional-socialismo foi um movimento de esquerda", afirmou, na  sequência, o embaixador alemão no Brasil. (Vale lembrar que a Alemanha é governada pela União Democrata-Cristã, de centro-direita).

Embalada pela polêmica, a Deutsche Welle (empresa pública de radiodifusão alemã) fez uma matéria com diversos estudiosos germânicos que explicaram como o nazismo era um movimento de extrema-direita que perseguia e se opunha a comunistas e sociais-democratas, seus adversários. "O Deutsche Arbeiterpartei (Partido dos Trabalhadores Alemães), que antecedeu os nazistas, foi criado em 1919 inspirado pela Sociedade Thule para solucionar um "problema": a classe trabalhadora pendia para a esquerda.", afirma um dos especialistas.

Mas a quem interessa espalhar essa mentira? Seria o equívoco ignorância ou má-fé?

A primeira vez que li algo parecido com “nazismo de esquerda” foi no"Guia Politicamente Incorreto da História do Mundo", livro que, segundo resenha da Folha de S. Paulo, a época de seu lançamento, "deve fornecer os exemplos preferidos de história universal dos comentaristas de portais da internet."

O "Guia" era muito bem escrito, como diz a resenha, e voltava-se a combater a “ideologia de esquerda” como uma corrente corrupta e violenta, baseando-se em uma mistura de dados, sofismas e a fórmula vencedora do jornalismo da Superinteressante de “falar o que ninguém está falando sobre o que todo mundo está vendo”. 

Ele se encaixava em uma cena de “nova direita” que englobava (ou englobaria) os ensinamentos de Olavo de Carvalho, o blog de Reinaldo Azevedo, os programas televisivos de Danilo Gentili, as entrevistas e livros de Lobão, os tweets de Roger Moreira ou Alexandre Frota, o humor de Marcelo Madureira, o "trovão da razão" de Constantino, o pacote “humor + opinião + notícias" da Jovem Pan, as campanhas do MBL, os vídeos do youtuber Nando Moura, a versão Eurípedes Alcântara da Veja, etc.

A reação a maior parte desses exemplos vindas da mídia tradicional, da esquerda e dos intelectuais foi não levá-los a sério, assim como se fez com o “caricato” deputado Jair Bolsonaro.

Lembro, inclusive, de um momento em que Lobão disse que a esquerda tinha se apoderado do "cool" e que a direita precisava aprender a jogar esse jogo para virar a partida. Olavo e Reinaldo batiam na tecla da "hegemonia cultural" de Gramsci, onde a esquerda teria desistido de tomar o poder pela "força" para tomá-lo pela cultura, apropriando-se de jornais, universidades e da arte.
Para Lobão e Cia seria a hora da direita fazer o mesmo.

Nos últimos 12 anos (digo isso porque "descobri" Reinaldo em 2006, quando comecei a trabalhar na Ed. Abril), venho acompanhando esse fenômeno com um mix de curiosidade mórbida, masoquismo e preocupação. Afinal de contas, havia uma crítica pertinente à certa “hegemonia” do pensamento da esquerda que parecia sentada no pudim, talvez um tanto acomodada com as vitórias pós-abertura democrática.

A reavaliação da idealização de ditaduras e crimes “revolucionários” tinha alguma lógica. Essa crítica não era necessariamente nova. Os melhores textos contra a ditadura de Stálin haviam saído da pena socialista de George Orwell ("1984", "Revolução dos Bichos") décadas atrás. Qualquer lógica se perdia quando a crítica à esquerda deixava de focar nos erros da esquerda e de seus líderes totalitárias e passava a botar na conta vermelha Hitler, Mussolini e outros ditadores de extrema-direita.

A intenção não era informar, de forma crítica. Era moldar uma nova realidade em tempos de pós-verdade e fake news na qual existiriam dois grupos: bons e maus. Os cidadãos de bem e os esquerdistas. Os honestos e os corruptos. Os democratas (sinônimo de capitalistas) e os autoritários (sinônimo de socialistas).

Por mais que a embaixada e os melhores pensadores alemães tentem, os que espalham a mentira de que o nazismo é de esquerda não vão ouvi-los. Não porque não entendem seu sotaque germânico, mas porque a verdade não se encaixa em sua propaganda maniqueísta de mundo.  Eles seguirão repetindo que 2 + 2 são 5 ou que o azul é vermelho. “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”,  ensinava Joseph Goebbels, ministro da Propaganda nazista.

Que era de direita. :-P.

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