Existem mulheres no interior que, aos 22, já estão casadas com um homem quieto e carrancudo que gosta de beber cachaça pelas manhãs e mal fala com os seus sete filhos. Também há mulheres na China cujo o seu marido é tão passivo que quase perde o seu status de homem da casa. Eles são limpos, organizados e o único filho-único do casal tem quatro anos e já sabe mexer no tablet.
Renata tinha uma leve noção da pluralidade de relacionamentos mundo afora e por isso entendia que não havia nada de errado com o seu – embora soubesse que alguns sussurrassem palavras maldosas pelos cantos da mansão.
Ela não sabia o que vestiria no dia da posse do seu marido. Não precisava. Em breve, estilistas passariam pela porta e escolheriam por ela. A roupa precisaria ter a mensagem certa e Renata não estava treinada para tal exercício de imagem.
Ainda de calcinha e sutiã, Renata encarou o seu reflexo no espelho de corpo inteiro. Ela era jovem e linda. Seus cabelos loiros desciam até o meio de suas costas delineadas. Sua cintura fina contrastava com os quadris largos, que alguns até poderiam considerar vulgares.
Que pensem o que quiserem, Renata não ligava. Sabia que os homens gostavam daqueles quadris, daquela bunda, daqueles seios que nunca precisaram de retoques médicos...
Renata já sentia falta dos olhares dos homens há alguns anos. O poder do seu marido (e os quatro seguranças que a seguiam dia e noite) era intimidador. Ninguém poderia flertar ou olhar para ela sem enfrentar as consequências e a moça não era boba de provocar.
Às vezes, jogava o seu nome na busca do Twitter só para ler os comentários anônimos. "Aquele velho nunca daria conta de uma mulher dessas!", um usuário escreveu. "Gostosa, gostosa, gostosa", outro twittou. Renata sorria, imaginando como aquelas pessoas seriam no mundo real.
Foi quando tinha dezenove que o seu pai entrou na sala sorridente e disse: "Arrume-se, filha. O deputado está na cidade e seria de bom tom que você fosse cumprimentá-lo".
O seu pai era envolvido com política, embora não fosse um. Vereadores e prefeitos sempre estavam na sua casa, mas, essa foi a primeira vez que a menina recebia a ordem de ir "cumprimentar" um. Imaginou que sorrir para um homem poderoso seria de alguma ajuda para a sua recém-iniciada carreira de modelo, então, tratou de vestir-se bem.
O deputado não era bonito. Seus cabelos brancos estavam rareando, a sua barriga se projetava para a frente e as rugas já eram expressivas. Ainda assim, tinha algo de pomposo nele, como se fosse um rei.
Trocaram algumas palavras e só. Ele foi educado, muito educado.
Muito educado.
Dois meses depois, seu pai – novamente ele – sugeriu que Renata enviasse um e-mail ao deputado o parabenizando pela sua reeleição.
"Bom dia, Sr. Deputado
Você se lembra, eu sou a Renata. Parabéns pela reeleição
Meu telefone é XXXX-XXXX, se quiser manter contato
Beijos"
Três dias depois, ele ligou. Ela sabia quem era porque era o único homem mais velho que tinha o seu número.
Numa noite daquela mesma semana de novembro, Renata entrou pela primeira vez no carro modelo Ômega preto do deputado. Ela vestia blusa decotada, calça justa tamanho 42 e escarpim número 38. Tudo preto, exceto o lenço de seda vermelho e amarelo.
Em dado momento, a idade de ambos virou tópico da conversa. Descobriu-se que eles tinham 43 anos de diferença. A filha mais nova do deputado tinha a mesma idade da mãe de Renata.
Depois de 40 minutos de conversa, eles se beijaram. O deputado tinha cheiro e gosto de cigarro, os seus lábios eram murchos, com uma textura estranha.
Começava assim o primeiro e único namoro da vida de Renata.
Eles passaram a se ver com frequência. "No dia em que você me mandou aquele fax, fiquei muito feliz", o deputado comentava. Ela não entendia, pois havia mandado um e-mail e não fax. Anos depois o mistério foi resolvido. A secretária do deputado imprimiu o e-mail e deixou na mesa do seu chefe que, ao ver o papel, confundiu com uma mensagem do aparelho antiquado.
Logo no início do namoro, Renata precisou interromper a sua carreira de modelo. Não seria bom para a imagem do namorado.
Depois do casamento, as maiores regras surgiram. Recebia memorandos de tempos em tempos que informavam o que ela deveria responder nas entrevistas, quais políticos ela apoiava agora e quais da antiga lista ela não apoiaria mais.
Passou a ser seguida por quatro seguranças, até quando visitava a manicure. Todas as roupas do closet foram trocadas, eliminando as blusas decotadas e as saias justas que ela tanto gostava de vestir.
Seu Twitter e Facebook eram vigiados. Quando mudou-se para Brasília, parou de receber a visita de amigos, pois não tinha nenhum na cidade (e dificilmente faria algum).
O seu marido dormia em casa três noites por semana. Mal se viam. Mal transavam e transavam mal.
Renata encontrou certo refúgio em livros de romance adolescente. Imaginou como seria fácil encantar o vampiro sensível com as curvas que tinha, mas que a porta para novos amores estava terminantemente fechada.
Conversou com a sua mãe, por telefone, sobre o amor. Ela não teria o direito de se encantar por um homem bonito e que ficasse ao seu lado? A mãe lhe explicou sobre como o romance surge com o tempo e que bastava esperar para notar como amava o deputado de verdade. A mãe também contou sobre como a vida de toda a sua família estava melhor e feliz agora que Renata era casada com um homem rico e poderoso. "Você nos orgulha muito", a mãe disse.
Numa sucessão de acontecimentos esquisitos que ela não entendia muito bem, seu marido agora seria presidente. Por isso, ela encontrava-se ali, de calcinha e sutiã, na frente do espelho, esperando que escolham a roupa ideal para a cerimônia de posse.
Tudo na sua vida era meio cinza e sem gosto. Mas, ela gostava muito do seu corpo. Seu corpo era vulgar, poético, livre, ao contrário de todas as outras coisas da vida de Renata.
Exceto por um detalhe que era quase sempre esquecido. Se ficasse meio de costas para o espelho e afastasse os cabelos loiros, ainda daria para ver, na altura da nuca, a tatuagem que fez em homenagem ao marido. Uma pequena lembrança de quem é o verdadeiro dono daquele corpo.
Renata deixou um fio de lágrima escapar do seu olho esquerdo. Não lhe restou mais nada.
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CADERNO DO SALI
De TodoUm blog dentro do Wattpad. Eu sou só um rapaz que gosta de escrever. Trabalho na revista Mundo Estranho, sou embaixador do Wattpad, escrevo livros e gostaria de conversar com você neste espaço. Você aceita?