O Homem-Gorila e uma lembrança esquisita

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Certa vez, quando eu ainda era bem criança, decidi que não tinha talento algum para desenhar e que isso não seria um problema. Li em um livro de produção de quadrinhos (eu lia qualquer coisa que ensinava sobre criação, mesmo que não entendesse boa parte das palavras), que o roteirista não precisava desenhar bem para criar histórias legais, em algumas técnicas ele era responsável por fazer apenas desenhos rápidos chamados "roughs" para que o ilustrador entendesse a mensagem de cada página, então mandava o seu rascunho para a editora que se incumbia de desenhar, colorir, fazer a arte-final e imprimir.

Desde então, passei a criar minhas histórias em quadrinhos caseiras apenas com os tais "roughs", prestando atenção apenas no enredo.

Me  empolguei muito escrevendo uma história sobre um gorila de laboratório que recebia inteligência quase humana em um experimento. Ao se olhar no espelho ele chega a conclusão de que é um homem muito feio (ao invés de um gorila muito inteligente) e acaba por se esconder no esgoto, de tanta vergonha de si mesmo, tal qual o fantasma da ópera. Visitando a superfície apenas durante a noite para combater o crime, simplesmente porque eu queria pancadaria nas minhas histórias.

Passava tardes e mais tardes das minhas férias escrevendo sobre as aventuras do Homem-Gorila.

Meu pai, que no começo sempre estranhou essa história do seu filho não gostar de jogar futebol e escrever histórias por diversão, passou a sentir uma pontadinha de orgulho do seu filho, o que lhe rendeu uma vontade de me fazer uma surpresa. Ele, escondido, pegou dois dos meus roughs e levou para uma gráfica imprimir.

No dia seguinte, apareceu com um sorrisão no rosto para me dizer que duas das minhas revistinhas estavam "em uma fábrica de fazer gibi" e que eu precisava ir ver como elas ficariam depois da impressão.

Nunca me senti tão animado na minha vida. Nunca.

Claramente, uma confusão havia se instaurado entre nós. Quando meu pai chegou com a notícia de que minha revistinha estava numa "fábrica de fazer gibi", eu havia imaginado (inocentemente) que se tratava de uma editora como aquelas sobre as quais eu tanto li. Eu imaginei um desenhista transformando meus roughs em uma linda ilustração, um arte-finalista cuidando das sombras e contornos, um colorista encontrando o tom perfeito de pelugem para o meu gorila –  tudo com a supervisão pesada de um sério editor geral. O que, obviamente, não correspondia à realidade de uma gráfica, que iria apenas escanear os meus rabiscos e montar uma chapa para impressão.  

Nunca vou esquecer o misto de sensações estranhas que se passaram pelo pequeno Sali quando deu de encontro com a realidade.

Um homem muito baixinho me mostrou, na tela de um computador, como ficaria a minha revistinha quando impressa: tão feia quanto o rascunho. Eu ainda havia feito tudo em folhas de caderno comuns, o que significava que toda a história ainda foi agraciada com lindas linhas sequenciais azuis.

Aquilo não era, nem de longe, a revistinha que eu sonhava publicar, e muito menos algo que eu queria circulando com o meu nome. Se era para publicar a minha revistinha assim, era melhor não o fazer.

Chamei o meu pai de canto discretamente e expliquei que ele não precisava desperdiçar o seu dinheiro nisso, ele ficou levemente decepcionado por fracassar no seu presente surpresa, mas não hesitou em cancelar o pedido. Entramos no carro em silêncio e quando chegamos em casa eu o abracei forte para agradecer pela intenção (nunca expressamos nenhum sentimento verbalmente, um para o outro, até meados dos meus dezenove anos, quando acordamos para esse fato e passamos a nos esforçar para deixar a vergonha de lado).

Sem perceber, eu havia aplicado uma das mais importantes posturas que devemos ter sobre o nosso trabalho. Qualidade é a prioridade, sempre.

Teria sido mais fácil deixar as revistinhas rodarem e guardá-las no meu quarto, mas um instinto me alertou que isso seria um desrespeito com o meu próprio esforço. Esse instinto é o mesmo que me faz escrever o mesmo texto diversas vezes, passar quinze minutos escolhendo a palavra ideal e permitir que seja publicado apenas o que me dá orgulho. Esse instinto tem me feito feliz, me motivado a acordar de manhã e me trouxe uma série de amigos novos e experiências incríveis. Se eu fosse deixar apenas um conselho para você, seria esse: acredite no seu instinto. 

CADERNO DO SALIOnde histórias criam vida. Descubra agora