Capítulo 50 - Feche a porta quando sair

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Ian

Cobri Noah, que já estava adormecido ao meu lado como um anjinho, e dei um rápido beijo em sua testa antes de me apoiar exausto no encosto da cama e olhar para o teto, tentando contar as estrelas coladas ali. 

Lembro-me do dia em que Kevin as colocou, nós dois o fizemos na verdade, fiquei feliz por ter aquilo, meu próprio céu estrelado. 

— Aqui, as suas estrelas nunca vão sumir, irmãozinho — ele havia dito. — Sempre que ficar nervoso ou pensar em fazer alguma loucura, apenas as conte, é contando às estrelas que tudo vai se resolver.

Eu sabia que nada iria se resolver apenas fazendo aquilo, mas aquele método estranhamente funcionava. Podia sentir a minha respiração ofegante relaxar e os meus batimentos cardíacos ficarem mais estáveis, era uma espécie de terapia para mim, sempre foi.

Meus olhos recaíram sobre meus pulsos enfaixados, que Noah estranhamente não questionou e fiquei feliz por ele não ter feito isso, porque eu não estava bem o bastante para ter que me explicar.

Logo eu teria que trocar as faixas de gaze, ambas já estavam um pouco manchadas de sangue. Se não fosse por Kevin eu não estaria ali ao lado de Noah, nem teria tido a chance de vê-lo novamente, eu já estaria morto, provavelmente no inferno.

Meus olhos se encheram de lágrimas enquanto eu desenfaixava meus pulsos revelando os cortes profundos e irreversíveis que fiz há pouco tempo com laminas de barbear que encontrei no banheiro.

Geralmente Kevin as escondia, tirava-as do meu alcance, tanto que ele mesmo fazia a minha barba para não deixar nenhum objeto pontiagudo perto de mim, porque ele sabia o que eu ia fazer, não era a primeira vez que aquilo acontecia. 

Era a única forma de eu conseguir me aliviar, de me livrar do peso que eu sempre carreguei, chegou num ponto em que a dor se mostrou insuportável, já não aguentava mais ser rejeitado, humilhado por algo que eu não podia mudar.

Antes de afundar a lamina em meu pulso, me recordava das humilhações que sofri publicamente, das porradas e socos que levei sem motivo nenhum, das brincadeiras de mau gosto, dos apelidinhos cruéis, a dor e o constrangimento da adolescência, a angústia ao me olhar no espelho e não me encontrar ali... 

Se eu fosse um garoto, tudo seria mais fácil.

Era isso que eu pensava, apenas isso. Se eu fosse um garoto, se eu pudesse ser quem eu sempre fui, pudesse ser eu mesmo.

Minha infância foi complicada, torturante na verdade.

Meninas não podem jogar bola, isso é coisa de menino.

Meninas têm que usar vestido, laços e presilhas no cabelo, ter cabelo comprido e não usar uma camisa de time de futebol ou do Homem-Aranha.

Cresci ouvindo essas regras vomitadas pela sociedade. Usando banheiro feminino, aqueles vestidos que não tinham nada a ver comigo e aquelas presilhas horríveis no cabelo longo e cacheado.

Quando finalmente consegui morar com Kevin e ser eu mesmo foi ainda pior porque eu tinha um cabelo curto e usava roupas de menino — embora ainda me chamassem de Jasmim porque a Ilha das Flores não tinha qualquer suporte para pessoas trans. 

Na escola, era quase impossível ir ao banheiro. Não iria aguentar entrar no banheiro feminino e ser enxotado de lá ouvindo os gritos agudos das garotas, muito menos ir ao dos meninos e ser pisoteado, humilhado e até mesmo ter a cabeça mergulhada no vaso sanitário, como já aconteceu diversas vezes.

Nada disso, a única solução que consegui encontrar foi parar de beber água para não ter vontade de ir ao banheiro e não ter que me deparar com a crueldade dos outros que não conseguiam me entender, me aceitar. 

Feche a porta quando sair ✅Onde histórias criam vida. Descubra agora