Quando recebi alta, Ian me levou para casa, mas não falou comigo o caminho inteiro, nem ajustou o retrovisor para ficar me olhando durante o caminho revezando entre a estrada e eu, e muito menos colocou uma música para que cantasse com a sua voz inapropriada enquanto batucava as mãos no volante.
Era um dia triste, estava chovendo e a estrada toda enlameada com gotas de chuva escorrendo pelo vidro borrando a minha visão e o barulho exagerado me remetia ao som de pipocas estourando.
Meu corpo ainda estava dolorido, mas ainda assim arrisquei alguns movimentos para me inclinar um pouco e conseguir ver Ian.
Sua expressão estava tão fria e séria que quase me arrependi pelas coisas que eu tinha dito.
Podia até mesmo me desculpar, porém eu não estava errado em falar tudo aquilo, mas sim pelas palavras grosseiras que acabei usando.
Querendo ou não isso o magoou e pelos lábios apertados numa linha rígida e a maneira com a qual segurava o volante — como se fosse estraçalhá-lo — me fez ter certeza de que ele não voltaria a falar comigo tão cedo.
Quando chegamos, Ian desligou o carro e saiu a passos largos e apressados batendo a porta com tanta força que me assustei. O pior de tudo foi que ele nem ao menos me ajudou a sair do veículo.
Tentei ignorar as dores e acabei com o pé enterrado na lama assim que me atrevi a sair. Soltei um palavrão baixo quase na mesma hora e me abracei, mordendo o lábio com força a fim de sufocar um gemido ou um grito agudo de dor. Eu estava mancando e me apoiando nas estátuas horríveis que decoravam a propriedade.
Fui o caminho todo xingando o Ian mentalmente. Tudo bem que ele não estava mais falando comigo e estava magoado por tudo o que eu falei, mas me deixar sozinho, ferido para que eu voltasse para a casa mal conseguindo andar era muita falta de profissionalismo.
Mesmo me odiando, ele ainda trabalhava para mim e seu dever além de dirigir para mim, era me levar para casa em segurança e nem isso o idiota era capaz de fazer.
Assim que passei pela porta sujando todo o carpete de lama, Catarina veio ao meu socorro, me ajudando a caminhar e permiti mesmo a abominando.
— O que houve, príncipe? — Ela colocou uma coberta macia e pesada em meus ombros.
— Não é da sua conta, Catarina, só me leve para o quarto e peça para que Sonia prepare uma sopa e traga para mim imediatamente.
— Sim, príncipe.
O palácio estava estranhamente silencioso, geralmente tinha vários seguranças e empregados rondando o local, mas naquele dia mal tinha três pessoas na entrada. Só depois que a lerda acabou me informando de que era feriado e que a maioria dos incompetentes tinha tirado o dia de folga.
Dia de folga para que? Eles não faziam nada além de ficarem parados olhando a paisagem ou limpando as coisas muito mal como se não soubessem esfregar direito.
Catarina não tinha força o suficiente e eu muito menos, então tive que segurar com firmeza o corrimão gelado da escada para me manter em pé. Cada passo me desestruturava e minhas articulações pareciam ranger em resposta.
Eu podia mandar um daqueles idiotas me carregar, mas não tive paciência para isso, queria provar para mim mesmo que eu conseguia subir sem a ajuda de ninguém além daquela empregada inútil, que na minha humilde opinião era a mesma coisa que nada.
No quarto, ela tratou dos meus ferimentos com um kit de primeiros socorros, que deixava sempre a mão mesmo depois de eu insistir que já tinha ido ao médico. Ela me tirava do sério, porém não tive paciência de discutir e deixei que ela passasse aquilo em mim mesmo após meu rosto começar a arder assim que encostou a gaze encharcada de remédio.
Nem pensei muito, apenas aceitei os cuidados dela sem reclamar, tomei a sopa que Sonia trouxe minutos depois e me aninhei na cama, torcendo para que Ian estivesse menos zangado no dia seguinte.
***
Não consegui sair da cama o dia todo e fiquei assistindo uma maratona de The Walking Dead para me distrair. No entanto, nem isso fez com que meus pensamentos deixassem Ian de lado.
Ele nem sequer veio me visitar para saber se consegui subir para o quarto ou ao menos estava vivo.
Vai ver ele não se importava comigo mesmo e queria apenas me desviar do caminho certo e fazer com que eu perdesse a droga da coroa.
Ian nunca se abria comigo, sempre que eu tentava conhecê-lo, acabava se afastando fazendo com que eu me sentisse um intrometido, sendo que ele se achava no direito de saber coisas sobre mim.
Era como se tivesse medo de falar comigo, de compartilhar as coisas. Tudo bem que eu era um pouco chato às vezes, mas isso não o impediu de se aproximar de mim, então não vejo motivos para ele ser tão reservado quando o assunto é o passado.
Mas era melhor assim, jamais daríamos certo mesmo. Que tipo de futuro eu e ele teríamos? Como eu reinaria estando tão envolvido com um homem? Como eu teria a minha Jasmim? Isso sem falar da vergonha e do constrangimento que rondaria esse relacionamento.
As vozes daqueles garotos tatuados eram apenas uma amostra da avalanche de comentários que ouviríamos sobre nós.
Minha reputação iria para o buraco e meu título seria motivo de piada. Não haveria mais respeito, apenas cochichos das pessoas julgando cada beijo e cada toque como se fosse algo errado ou doentio.
Após zapear os canais com esses pensamentos conflitantes ainda martelando em minha cabeça, acabei colocando num filme chamado Shelter, que a primeira vista pareceu só um filmezinho adolescente contando a história de dois surfistas, mas conforme foi se desenrolando, vi que era muito mais do que isso.
O mais louco foi que eu acabei me vendo no protagonista, compartilhando seus medos, suas angústias, entrelaçando minha dor e minhas dúvidas nas dele, tanto que acabei chorando no final e nem era uma história triste.
Não tinha ideia de que existiam filmes assim, contando um romance entre dois homens como se fosse algo normal.
Não que o filme retratasse exatamente isso, ainda era possível ver o preconceito enraizado e a vergonha vindo do próprio protagonista e ele venceu isso, e se um personagem fictício conseguia, por que não eu?
Claro que para mim era bem mais complicado, então por isso eu tinha que pensar bem para não acabar fazendo uma bela de uma burrada.
Eu não queria magoar o Ian — embora eu tenha feito isso de certa forma —, muito menos me magoar, e de alguma forma desapontar toda a minha família.
Ficar com Ian prejudicaria o reinado, não haveria herdeiros Chevalier para a próxima geração e a maior regra de todas era que o herdeiro tivesse o sangue do rei e da rainha correndo em suas veias. Então mesmo que eu encontrasse uma espécie de barriga de aluguel para gerar Jasmim, ainda não poderíamos ficar juntos, pois eu era forçado por lei a me casar com quem gerasse minha filha, essa era a regra.
Era algo grande demais para que eu conseguisse lidar sozinho, porque as consequências não recairiam apenas sobre mim, mas também em toda a ilha.
No final das contas, querendo ou não, era uma escolha só minha.
Se eu me entregasse ao Ian e a tudo o que eu sentia por ele, eu não poderia reinar e nem ser pai, tudo o que planejei ao longo dos meus dezessete anos seria destruído.
Já se eu o repelisse, escondesse esse lado que tanto me assusta, teria tudo o que planejei, todavia correria o risco de ser infeliz por ter isso adormecido dentro de mim ao querer e ansiar por algo que jamais poderia ter.
Ian era uma pedra no meu sapato e eu só tinha duas opções: ou eu o recolheria colocando essa peça fundamental em meu coração, ou eu o esmagaria e seguiria em frente como se eu jamais o tivesse conhecido.
E eu só precisava saber qual das duas opções valeria mais a pena.
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Feche a porta quando sair ✅
RomancePLÁGIO É CRIME! É proibida a distribuição e reprodução total ou parcial desta obra sem autorização prévia do autor. Noah Chevalier tinha um plano: iria se casar, ter uma filha e assumiria o posto de rei da Ilha das Flores como sempre sonh...