Capítulo 46 - Sentindo pena daquela pobre alma

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Noah

— N-n-não tem ninguém com esse nome — Dava para ver que estava mentindo, a tremedeira de seu corpo já denunciava.

— Por favor — Segurei a porta, impedindo que ela a fechasse bem na minha cara. — Eu preciso mesmo vê-lo.

A mulher desistiu de competir a sua força comigo e se abraçou, desatando a chorar segundos depois, me deixando pasmo e sem reação.

— Por que está chorando? — Não pude deixar de me sentir culpado. Sei lá, senti como se Ian estivesse chorando na minha frente e isso me incomodava muito.

— Não tem ninguém com esse nome — repetiu entre um soluço e outro. — Por favor, vá embora!

— Não — soei firme, e tive que me sacudir para me livrar dos puxões de Nathan, assustado ao meu lado e surrando ''príncipe'' num tom preocupado, que denunciava o seu medo. — Não saio daqui enquanto não falar com ele.

— Vou ligar para a policia — ameaçou, limpando as lágrimas com violência.

Tive vontade de rir.

— Você sabe quem eu sou, minha senhora? — perguntei, esboçando um sorriso. — Príncipe Noah Lavezzo Aurelius Chevalier, a polícia não pode me prender.

— Isso é invasão de domicilio.

— Não é não, estou do lado de fora e não irei a lugar algum sem antes falar com ele, quero conversar com o Ian.

A mera pronúncia daquele nome, fazia com que a mulher recuasse e se encolhesse. Pelos traços de seu rosto familiares, estava na cara de que era parente de Ian, ninguém possuía olhos tão negros quantos os dele, mas aquela mulher tinha os mesmos, embora os de Ian soassem mais amigáveis, enquanto os dela não passavam de dois buracos negros amargurados.

Ela não mora mais aqui.

Ela. Então minhas dúvidas foram finalmente sanadas, Ian era mesmo Jasmim e o som de desprezo misturado com medo ao qual aquela mulher se referiu a ele só deixava ainda mais claro aquilo.

— Jasmim — arrisquei pronunciar o nome que por anos admirei, mas que agora só me deixava com um nó na garganta. — Então você sabe.

— Como não saber? — Ela ainda chorava. — Sou a mãe dela, minha menininha...

E desatou a chorar novamente, só que dessa vez não consegui vê-la se desmanchar daquele jeito sem abraçá-la, afinal compartilhávamos da mesma dor, embora eu não tivesse a menor ideia de como era Jasmim antes de eu conhecê-la como Ian.

A dor daquela mulher se conectou comigo de tal forma que não pude explicar e logo estávamos entrando na pequena casinha de boneca, eu a acolhendo e reconfortando e Nathan nos seguindo como um chaveirinho.

Acomodamos-nos no sofá e puxei um lenço dourado de meu bolso e ofereci a ela, que aceitou de bom grado, deixando um sorrisinho desanimado escapar.

— Não a vejo desde os seus cinco aninhos — relembrou, dali eu podia senti a nostalgia que certamente invadia a sua mente naquele momento, as lembranças a consumindo. — Era uma menina tão linda, a minha Jasmim.

Pesquei a foto surrada e manchada que eu tinha e lhe entreguei, suas mãos descuidadas a pegaram, tremendo.

Tão linda... — lamentou, acariciando a foto como se fosse a própria Jasmim, seus olhos brilhavam e era possível sentir o medo e o arrependimento emanando deles. — Ela foi embora com Kevin, ele passou a ser o guardião legal dela assim que conseguiu se formar em medicina.

— Como assim passou a ser guardião?

— Nós demos a guarda para ele — revelou, me entregando a foto, enquanto assoava o nariz no lenço, que nem ferrando eu pegaria de volta.

— Por quê?

— Aquilo era errado, minha filhinha não estava agindo normalmente e eu iria acabar perdendo ela. Mas Kevin ao invés de me ajudar a consertar a minha menina, a trazê-la de volta, ele incentivou aquela coisa absurda — Sacudiu a cabeça, como se quisesse afastar as memórias. — Nós fizemos de tudo, a levamos para psicólogos renomados que nos disseram o que fazer e quando fizemos, Kevin censurou tudo, dizendo que não entendíamos que Jasmim era um menino transgênero. Lembro-me até hoje dos olhinhos dela brilhando quando ele a chamou de menino, Kevin sempre a chamou de irmãozinho.

Ela engoliu em seco antes de continuar, os ombros encolhidos como se tentasse reunir a sua agonia e colocá-la de volta para dentro, mas tivesse medo de que não pudesse suportar tudo aquilo.

— A gota d'água foi quando ele a levou para cortar o cabelo — Ela não estava mais ali comigo, pela sua cara dava para ver que estava distante, sendo corroída pelas memórias e despejando-as em mim. — Jasmim tinha os cabelos mais lindos que já vi, cachinhos meigos, com presilhinhas de borboleta — Sorriu, certamente se lembrando. — Claro que era difícil fazê-la usar certas roupas como vestidos e afins e eu sabia que isso a deixava infeliz, mas ela era uma menina e devia agir como tal querendo ou não.

Parecia que eu estava ouvindo a história de outra pessoa e não do Ian. Não soube exatamente o porquê, não conseguia aceitar que ele um dia tinha sido uma garota.

— Fizemos de tudo... — lamentou, com o lenço pressionando em seu nariz pontudo. — A levamos até mesmo na igreja para fazer diversas sessões de descarrego, porém nada funcionava. Foi aí que Kevin se rebelou quando conseguiu o diploma e tirou a minha menina de mim, justamente quando estávamos no caminho de consertá-la. Mas não consegui pestanejar, já não aguentava mais aquela luta, perder aos poucos uma filha e se não deixasse ambos partirem, as coisas ficariam ainda piores. No final das contas, acabei perdendo os dois...

— O que vocês iam fazer? — perguntei, sentindo um pouco de medo dela e pena do Ian. Era muito bizarro a diferença que o olhar dela tinha ao ouvir o nome Jasmim e Ian, enquanto um a deixava feliz, o outro a destruía.

— Entramos em contato com o pai de Christian, ele sabia o que fazer, tinha um tratamento específico para esse tipo de coisa.

— Christian? O presidente? — arrisquei, me lembrando daquele homem gigantesco e intimidante e das acusações que Ícaro despejou nele.

— Sim, se ele podia curar gays, era provável que pudesse fazer o mesmo com a minha filha.

— Gays não são doentes, minha senhora — Me senti extremamente ofendido e tive vontade de falar poucas e boas para ela, só que o peso do olhar de Nathan sobre mim quando argumentei me deixou um pouco receoso.

— Claro que são, abominações, errado aos olhos de Deus — Ela empinou o queixo e o apontou para a cruz gigantesca pendurada em sua parede mal pintada.

Ah, tá explicado, ela era uma fanática religiosa. Não sei por que, mas isso me deu preguiça, ainda mais quando notei o terço pendurado em seu pescoço ao qual ela segurava provavelmente fazendo uma oração interna.

Nunca fui uma pessoa religiosa, mas sempre acreditei em Deus, porém nunca achei que ele fosse o tipo de cara que julgava e condenava as pessoas. O meu Deus espalhava o amor acima de tudo e não gostava de ver as pessoas brigando e condenando umas as outras por algo que estava enraizado nela, algo que não influenciava em nada no seu caráter, algo que deveria ser normal assim como ser hétero era, assim como respirar era.

Mas pelo visto, o meu Deus não era o mesmo que o dela e não pude deixar de sentir pena daquela pobre alma. 

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