Capítulo 52 - Diga isso aos meus pais

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Ian

Ainda era noite e eu não tinha dormido nada, porque eu sabia que assim que eu fechasse os olhos, aquela avalanche de lembranças viria à tona.  

Noah ainda estava aninhado em mim, com a palma da mão apoiada preguiçosamente em meu peito. Ele também não voltou a dormir, estava tagarelando sobre como tinha conseguido me encontrar e mostrou uma foto surrada que estava no bolso de sua calça, o que logo me despertou memórias ruins.

— Essa foi a época em que deixei o meu cabelo crescer — revelei, apertando Noah com o braço que não estava segurando a foto. — Foi na minha adolescência, bem antes dos hormônios, é uma foto escolar — entreguei a ele, sem querer dar mais explicações, mas algo dentro de mim me forçou a fazê-lo, a vomitar aquelas verdades de uma vez, guardá-las comigo só me fazia mal. — Pensei que se eu deixasse o cabelo maior, os xingamentos e as ofensas diminuiriam, mas nada feito.

Noah deu um rápido beijo em meu queixo e me abraçou, com mais força, como se eu fosse o seu ursinho Max.

Fiquei enrolando dos dedos em seu cabelo cor de areia e massageando seu couro cabeludo, adorando o fato de ele estar ronronando para mim como um gatinho.

— Graças a Deus isso já passou — murmurou, como se fosse uma espécie de consolo para mim.

Levantei a sobrancelha de modo inquisidor e Noah acabou captando essa minha incompreensão.

— O que foi? Não acredita em Deus? — ele riu, como se aquilo fosse totalmente improvável.

— Eu acredito em Deus, Noah — admiti, fazendo-o relaxar um pouco. Não que eu achasse que todos deveriam acreditar, até porque eu sabia o quanto era difícil manter a fé quando todo mundo dizia que você não merecia tê-la, que o que você é era condenável. — E também acredito que ele tenha errado quando me deu um corpo, mas faz tempo que deixei de culpá-lo por isso — continuei, fazendo uma pausa para colocar meus pensamentos em ordem sem ser sugado novamente pelo meu passado que insistia em me assombrar. — Não faço o que faço por ter um coração enorme e nem nada disso, mas sim porque penso que devo isso ao mundo, como se eu tivesse que compensar pela minha existência, entende? — Foi uma pergunta retórica, mas ainda assim, Noah assentiu. — Minha obrigação é ser bom, é tudo o que tenho, a única coisa que posso oferecer ao mundo é a minha bondade, que não é perfeita, mas espero que seja o bastante para eu não ir para o inferno.

Foi à vez de Noah ficar confuso e vincar a testa em resposta.

— Você jamais iria para o inferno, Ian — O menino sacudiu a cabeça, como se tal ideia soasse absurda aos seus ouvidos, porém se tudo o que diziam sobre religião e essas coisas era verdade, eu não tinha para onde correr, era como se o meu destino já tivesse traçado e as laminas era apenas uma forma de acelerar o processo. Se o meu fim era mesmo aquele, porque adiar?

— Diga isso aos meus pais — grunhi, entredentes enquanto me lembrava dos sacrifícios que ambos fizeram na tentativa inútil de me consertar. As sessões intermináveis de descarrego, as inúmeras horas rezando o terço e orações que eu repetia a exaustão, tanto que eu já as sabia de cor. O pior de tudo era que nada daquilo foi útil, nada foi capaz de tirar do demônio que acreditavam que vivia em mim.

Ian nunca foi um demônio, Ian era eu, era como se eu fosse uma espécie de espírito que por um azar foi posto na casca errada e não era capaz de sair sozinho, então teve que se acostumar com aquela casca e modificá-la da forma como a sua mente queria e precisava.

— Eles são difíceis de se convencer — O modo como ele falou aquilo, logo me chamou a atenção. Falava como se os conhecesse e minha cara de espanto exigiu uma explicação urgente.

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