Capítulo 3 - O passado em família

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Narrado por Gabriel

Acordei às oito da manhã, na verdade, saí da cama essa hora, pois já estava acordado há algum tempo. Não consegui dormir sabendo que às nove horas seria o enterro de minha meio-irmã e o reencontro com meu pai adotivo.

Espero que meus pais pelo menos me cumprimentem ou olhem para mim, depois de tanto tempo sem nos ver. Talvez minha mãe desse um meio-sorriso, pois ela havia mandado em meu último aniversário um cartão simples, sem sua letra, apenas com as palavras impressas e sem sentimentos. Aquilo havia sido um tanto frio, mas pensei pelo outro lado; melhor do que nada.

Meu pai não falava comigo desde o dia em que saí de casa ao término de nossa briga em família. Minha mãe e Mariana aquela noite assistiram ele e a mim gritando ou xingando um ao outro violentamente.

A discussão começou quando descobri sem querer pela fala de meu pai à mesa que meu nome não estava no testamento da família e Mariana sim. Augusto havia tomado algumas doses de whisky e vinho àquela noite; então suas palavras estavam bastante afiadas.

Meu pai se vangloriava por ter uma filha com seu sangue correndo nas veias e esfregava na minha cara que eu era adotado; por ter sido abandonado pela minha outra família e que eu nunca herdaria o seu legado. Ele aumentava o tom de voz toda vez que queria me insultar, ele bambeava bêbado sobre a mesa; se alguém desse um sopro ele cairia sobre tudo.

"Não vou deixar um tostão para alguém que não tem meu... meu sangue... nas veias! Não vou! Eu tenho uma... filha legítima, então ela quem herdará meu... legado, ela!" - as palavras ácidas dele me cortaram como lâmina aquela noite. Minha mãe não se intrometia em nossa discussão e Mariana apenas observava, parecendo deliciar-se em saber que tudo que sua família havia construído por gerações enfim um dia seria dela.

Meu pai rodeou a mesa e aproximou-se de mim, pegando-me pela camisa e apertando-a entre seus dedos. Ele disse amargo e suas palavras machucaram meu coração:

"Eu tive pena de você, por isso está aqui em nossa mesa, comendo da minha comida, dormindo debaixo de meu teto, por pena!" - ele cuspiu em meu rosto, enojado. Ao me soltar, empurrou-me com violência para trás.

Minha mãe levantou-se da mesa e pegou em seu braço, ele virou-se contra ela e a esbofeteou, deixando a marca de seus dedos e um corte proporcionado pelo anel de casamento. Sua esposa voltou à cadeira, obediente, sem se intrometer mais.

Não ia deixar que ele machucasse a minha mãe. Levantei depressa da mesa e o soquei, ele cambaleou para trás, aquele ataque o derrubou de costas ao chão. Quando ele se estabilizou, o seu olhar em minha direção era violento; ele me odiava.

"Da próxima vez que bater em minha mãe, eu quebro o seu nariz!"

Minha mãe e Mariana fitaram-me como se o vilão naquela casa fosse eu, seus olhares me acusavam de violento e afrontoso. Jamais um filho, ainda mais adotado naquela família, deveria ter levantado a mão para um pai, ainda mais um que o abrigava e o alimentava. Gisele não estava agradecida por tê-la defendido. O seu olhar dizia que eu tinha acabado de arruinar ainda mais a paz daquela casa.

Por conta daquele olhar, uma profusão de sentimentos correu por minhas veias; raiva, tristeza, ódio. Com a mente em chamas, levantei da mesa de supetão derrubando para todos os lados pratos da estimada porcelana de minha mãe, a sobremesa feita por Mariana e o pato recheado por meu pai. Tudo se espatifou ao chão e todos ficaram estáticos àquela cena, já eu apenas dei às costas e saí pela porta da frente, sem dizer adeus ou muito menos subi para pegar alguma mala de roupas.

Saí pela porta da frente, disposto a deixar tudo para trás. A chuva lavou o meu rosto, como lágrimas dos céus. Ouvi meu nome e virei-me para trás. Era Mariana correndo atrás de mim e debaixo da chuva torrencial ela pegou a minha mão.

"Fique" - disse ela.

"Não ficarei, ele me odeia..."

"Você vai para a casa daquela vagabunda?"

"Não a chame assim... ela é depressiva e acabou de perder o marido... e aliás, terminei com ela já faz uma semana."

"O marido dela morreu sem saber quem realmente era ela... uma cadela!"

A cólera me dominou de repente, Mariana não queria que eu ficasse junto à família e sim dela. Peguei Mariana pelo pescoço e a joguei contra o tronco de uma árvore próxima. Ela bateu as costas contra o tronco áspero e úmido.

"Não a chame mais assim, entendido?!

"Me solta!"

"Estamos entendidos?" - repeti, apertando minhas mãos com mais força contra o seu pescoço. Ela gemeu.

Meu pai havia tirado toda a minha paciência e ouvir Mariana xingando minha amante não ajudaria a me acalmar.

Finalmente a libertei de minhas mãos, ela tossiu e caiu de joelhos no gramado encharcado. Abaixou a cabeça e suas mãos correram ao pescoço machucado.

"Eu te amo, Gabriel..." - ela disse, com dificuldade, chorando, ainda de joelhos ao chão.

"Nós somos irmãos Mariana...

"Meio-irmãos e isso nunca o impediu de me amar debaixo dos lençóis."

"Transar contigo nunca me fez pensar em ter um relacionamento amoroso fora da cama. Desde crianças sempre fomos irmãos e nada mais. O sexo só veio para nos distrair dos maus tratos de nosso pai bêbado com nossa mãe."

Me afastei de Mariana e ela gritou pelo meu nome, o barulho da chuva, extenuou a sua voz, não queria ouvi-la mais. Não queria senti-la sendo penetrada por mim. Eu a odiava por ser minha meio-irmã, por ser a filha legítima da família, por estar no testamento e por querê-la toda vez em minha cama.

Eu a odiava pelo simples fato dela existir e tomar conta de toda a minha vida. Mariana era o meu câncer e se não me afastasse dela, o câncer se espalharia e não teria cura.

Segui naquela noite chuvosa, entre raiva, ódio e desespero, em direção da casa de Lúcia, talvez ela me deixasse dormir na garagem.

Meus pensamentos voltaram ao presente assim que ouvi a campainha tocando. Era Meredith.

Fui atendê-la. Abri a porta e ela perguntou sem jeito:

- Está pronto?

Dei um meio-sorriso, fitei meu próprio terno e respondi:

- Sim, estou pronto para dizer adeus a Mariana...

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Desaparecida na penumbraOnde histórias criam vida. Descubra agora