PRÓLOGO

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"Aprendi com a primavera; a deixar-me cortar

e voltar sempre inteira... "

Cecília Meireles


Procuro ficar em silêncio.

Não posso deixar que meus soluços acorde as crianças que foram dormir assustadas com meus gritos. Tentei não fazer alarde, mas chegou uma hora que não consegui. Hoje ele exagerou.

Extrapolou todos os limites.

Enxugo com as costas da mão, as lágrimas que não param de cair.

Ouço seus passos caminhando da sala para a cozinha. Passos que não estão mais raivosos, o estresse dele foi aliviado no meu corpo e rosto. Ele é cuidadoso. Procura não deixar marcas visíveis, mas nem sempre consegue. E quando isso acontece, vejo nitidamente seu arrependimento. Então ele muda radicalmente. Do homem violento, ele se transforma em um homem arrependido. E aí, me enche de cuidados, atenção e carinho.

Outras lágrimas começam a escorrer pelo meu rosto machucado. Levanto a mão e toco com a ponta dos dedos meus lábios cortados. Preciso pensar numa boa desculpas amanhã pois tenho que trabalhar e todos vão perguntar o que houve. Meu coração acelera quando ouço os passos dele subindo a escada. Conheço-o bem. Sei exatamente o que vou ver, quando ele abrir a porta do nosso quarto. Seu rosto perfeito, vai estar atormentado pela culpa e arrependimento. Ele caminhará em minha direção e sentará na ponta da nossa cama. Então, baixará a cabeça e começará a chorar como uma criança perdida. É este o padrão. E eu, como a idiota que sou, sempre acabo perdoando seus excessos. Isso acontece há dezoito anos.

E apesar de perdoá-lo todas as vezes, uma parte de mim - aquela que se apaixonou por ele e por tudo que ele representava para mim quando nos casamos - essa parte se rebela contra ele. Contra as promessas que ele me fez e não cumpriu.

Algumas lágrimas voltam a escorrer de forma silenciosa pelo meu rosto.

- Me perdoa, amor... não sei o que aconteceu...mas sou louco por você e ver aquele idiota te assediando me tirou do controle. Nunca mais vai acontecer, eu juro.

Queria muito acreditar nisso. Queria de verdade. Mas não consigo mais. Então, a mulher que não aceita mais a vida que tem há muitos anos, assume o controle e diz:

- Ele não me assediou. Ele é apenas um amigo da Bruna e um cliente

- Amor, é que você não viu a cara dele quando te olhou. Você é linda e gostosa pra cacete. E... - um suspiro de pesar e ele se aproxima - Desculpa. De verdade. Não vai acontecer mais.

Então ele me puxa para seus braços e eu tento me convencer que será a última vez que ele fez isso.

Mas meu coração maltratado se recusa a aceitar que isso é amor.

Então suas mãos passeiam pelas minhas costas, apagando toda dor que ele me infligiu e eu solto o ar novamente. Sim, ele me ama. Ele só sente ciúmes e é inseguro. Mas isso tudo vai passar. Retribuo de forma desajeitada o abraço e peço a Deus que ele volte a ser o homem com quem me casei há vinte anos. Quero aquele gentil e carinhoso de volta.

É só o que eu quero.

Sentir que o tempo não passou e que os últimos dezoito anos de violência nunca existiram.

Quero os dois primeiros anos de casamento de volta.

Estou muito cansada de tentar trazer aquele homem gentil e amoroso de volta.

Eu sei que não vou conseguir.

Não conseguirei, porque aquele homem jamais existiu.

Mesmo assim, ele tenta me beijar novamente e eu acabo cedendo.

Só que quando sua boca encosta na minha boca machucada, um lembrete é disparado na minha cabeça: quem ama não machuca.

E quando algum tempo depois, ele sai do nosso quarto, eu me levanto e tomo uma decisão. Vou segurar as rédeas da minha vida novamente.

Custo o que custar.

O Silêncio da AlmaOnde histórias criam vida. Descubra agora