- Capítulo 36 - Alma Condenada

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     Sam levantou o olhar para mim.

     Os olhos amêndoas me encararam de uma maneira que achei que jamais seria encarada de novo. O olhar de piedade de Sam levou-me de volta ao tempo em que eu vivia uma paixão falsa. Quando acordava cedo todos os dias para visitá-lo em sua casinha de madeira. Sempre trajada com a roupa de couro preta e a máscara ocultando o rosto. Vivia vestida assim até nos piores dias de calor, até no frio mais rigoroso de Velares, apenas para bater em uma porta repetidas vezes, e, quando atendida, dizer "Oi Sam".

     Tantas memórias me vieram a mente quando ergui a Diamantina, decidindo o caminho de todos aqueles que guerreavam lá fora.

     Ainda doía. Na verdade, tudo doía.

     Não apenas o corpo com hematomas horríveis, a cabeça que latejava, as costas que doíam graças ao tempo passado naquele inferno de fortaleza. Nem mesmo a sensação de formigamento que sentia nas cicatrizes que, um dia, deram espaço a lacerações terríveis.

    Nenhuma dessas dores se comparavam ao que mais doía.

    Aquilo era uma dor psicológica.

    Nenhuma tortura no mundo seria tão ruim a este ponto. A dor não vinha de algo físico. Tinha origem em pequenas ações ao longo desse período. Desde o dia em que vi Sam entrando pelas portas do castelo e atacando qualquer um que ousasse se opor contra ele. Ou quando, pela primeira vez, Sam agarrou meu pescoço, ameaçando-me de morte. Ou no dia que acordei em Hansport quando havia perdido tudo.

     Depois vieram mais episódios. A invasão de Greysand na qual tive de matar um pobre cidadão possuído, o ataque de Ruby quando nos encontramos, a humilhação que sofri nas reuniões dos reis, o dia em que tentei enforcar Sam em um ato impulsivo... Minha proposta de casamento para o príncipe Matthew, sendo este um dos atos mais egoístas que já fiz, eu estava realmente apaixonada por ele, mas ainda acreditava que o príncipe invernal era bom demais para mim.

     Mas, no próximo dia, veio a decadência do nosso exército. O dia no qual ajoelhei-me no campo de guerra e entreguei-me de alma para os inimigos. Eu acreditava que merecia aquilo, merecia por todo o sofrimento que eu mesma havia causado. E, então, minha mãe apareceu, ela era a luz que eu precisava.

     Ela me mostrou que aquilo não era uma punição, e sim um ato de coragem, um sacrifício. Matthew havia me dito isso milhares de vezes, desde o momento em que desceu a montanha de Hanpsort comigo, mas eu era teimosa. Apenas abri os olhos em um pico de vulnerabilidade.

     Quanto a magia vinda do coração, Morgana estava certa, ela sempre existira. Estava ali comigo em todas as situações, mas sempre quieta e dormente. E durante esta jornada, cada aprendizado servia de alimento para a magia que começava a despertar dentro de mim. Eu podia sentir a leveza do meu corpo durante as sessões de tortura, conseguia manter a cabeça sã mesmo depois de tantos xingamentos. Porque, na verdade, a magia estava se acumulando ali dentro, e se tornava mais forte a cada dia.

     Eu estava cansada. Tanto fisicamente quanto psicologicamente. Sam percebera isso quando me encarou, era nítido, e eu não teria vergonha de escondê-la. Eu estava desgastada, sim, mas também continuava em pé, determinada. Pois a magia não me deixaria desistir. Eu não me deixaria desistir.

      Sam se levantou dos escombros, calmamente ajeitou a armadura graciosa que esbanjava poder. Um poder no qual ele nunca deveria ter se apropriado, mas não por ser um camponês, mas por não ter bondade o suficiente para isso.

     Quando a espada negra de Sam desferiu-me um golpe, nunca senti os braços tão leves. A alma tão refrescada.

     Não estava mais em uma luta dramática, aquilo havia se tornado uma dança mortal. Um passo para trás, um desvio da lâmina, um passo para o lado, e Sam estava desequilibrado.

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