–Será que vamos levar outra bronca? –Perguntou Ayla, nervosa, sentada à mesa do refeitório do Convento, que àquela hora estava praticamente vazio.
–O que você esperava? Eu tentei avisar. –Disse Violeta, parada com a cadeira ao lado da amiga. –Minha cadeira não é um carrinho de rolimã.
Ayla abaixou a cabeça. Talvez tivesse ido um pouco longe demais mesmo. Não imaginava que uma simples brincadeira pudesse terminar daquela forma tão desastrosa. Quando as portas do refeitório se abriram e a face enraivecida de Irmã Sandra apareceu, ambas tiveram vontade de enterrar-se na terra e nunca mais retornar.
–Muito bem. Vou perguntar apenas uma vez. –Disse Irmã Sandra, parada em frente a dupla com uma régua longa de madeira nas mãos. –De quem foi a brilhante ideia?
As duas ficaram em silêncio absoluto, olhar cabisbaixo, evitando contato visual com a freira mais velha. Nem tinham como pôr a culpa em Marlene daquela vez. Apesar de ser como uma mãe para elas, Sandra sabia como demonstrar sua autoridade quando precisava. Por sua vez, também sabia que nenhuma delas entregaria a outra, mesmo que significasse que as duas tomariam bronca.
Estavam preparadas para o castigo quando, de repente, Irmã Sandra colocou a régua sobre a mesa e se sentou no banco à frente de Ayla, ficando também em silêncio.
–O que será que houve? –Sussurrou Violeta para a amiga.
–Não sei. Será um novo truque? –Sugeriu Ayla. –Será que podemos ir embora?
Irmã Sandra soltou um longo e lamurioso suspiro.
–Não posso... –Murmurou ela, mais para si do que para as meninas. –Não posso permitir isso, Senhor, não posso...
Ayla sentiu um aperto no coração. A Irmã estava... chorando? Chegara a pensar que nenhuma freira possuísse essa habilidade, mas ali estava ela, uma lágrima, escorrendo rente ao rosto jovem de Sandra.
–Irmã? –Chamou ela, sem resposta. –Desculpa, a culpa foi minha. Não tive intenção de passar por cima da Irmã Cássia com a cadeira da Violeta e nem de derrubar a cesta de ovos que a Irmã Rita carregava. Foi tudo culpa minha. Não precisa chorar por isso, eu...
Súbito, Sandra puxou Ayla para um abraço, deixando a menina sem palavras. Algo muito errado poderia estar acontecendo, mas receber aquele abraço era muito bom. A Irmã a puxava para si, enterrando sua cabeça em seu ombro, parecendo ainda chorar. Violeta assistia a tudo sem nada entender, ficando em silêncio para não atrapalhar aquele momento. Quando enfim Sandra voltou a se afastar, mantendo contato visual com Ayla, seus olhos estavam vermelhos e alguns fios de cabelo escuros escapavam pelo capuz de sua batina.
–Por favor, Ayla, só peço que me escute. Pode fazer isso pelo menos uma vez para mim? –A menina concordou lentamente. A Irmã prosseguiu. –Não quero que você vá embora. Nenhuma de vocês. –Disse, olhando para Violeta. –Quero que pensem seriamente sobre ficar aqui. O natal está próximo, é verdade, e a matricula do colégio só precisa ser feita ano que vem. Por isso, quero que pensem no assunto e me digam o que querem fazer amanhã de manhã. –Sandra levou um dedo ao olho, recolhendo uma última lágrima que teimava em permanecer estática. –Podem fazer isso por mim, por favor?
Violeta chegou sua cadeira para frente, tocando o braço de Irmã Sandra com delicadeza.
–Não se preocupe, Irmã. Terá sua resposta ao amanhecer. Dou minha palavra. –Disse, cutucando Ayla com o cotovelo. –Não é mesmo, Ayla?
–Sim. –Ainda estava meio aturdida pela cena toda. –Sim, sim, claro. Pode deixar comigo. Digo, com a gente.
–Obrigada. Não sabem o quanto isso é importante pra mim.
Irmã Sandra levantou-se, endireitando novamente a postura e voltando a ser uma freira como outra qualquer, como se abdicasse completamente de sua vida carnal para aderir à uma existência e à um propósito maior que ela mesma. Será que seriam assim se ficassem e terminassem seus estudos no Convento?
–Isso quer dizer que não seremos castigadas? –Perguntou Ayla inocentemente, arrependendo-se imediatamente após perguntar.
–Claro que serão. –Respondeu a Irmã. –Como castigo pelos ovos, vocês duas ajudarão a Irmã Rita e as demais na cozinha com a preparação do jantar essa noite. Podem ir se trocar e procurar a Irmã para pedirem desculpas e perguntar o que precisa ser feito. Depois tratamos da Irmã Cássia.
Ayla suspirou, derrotada, concordando com a punição.
Aquele seria um longo dia.
* * *
Ayla caiu sem forças sobre sua cama, provocando um estalo na madeira velha. Estava exausta, com os olhos ainda ardendo das cebolas e com dezenas de cortes em suas mãos de ficar descascando batatas.
–Não é justo! –Gritou com a cabeça abafada pelo travesseiro. –Por que preciso decidir algo tão importante tão cedo? Deveríamos poder esperar mais!
–Já esperou quinze anos, Ayla. –Lembrou Violeta, deixando sua camisola de dormir cair sobre o corpo. Era impressionante que conseguisse tirar e pôr a batina sem ajuda agora, além do uniforme escolar, que já estavam postos para lavar desde cedo. Nem sabiam o que fariam com eles quando chegassem junto com as outras roupas. –Não pode esperar a vida toda por uma decisão.
–Não é isso. É só que, sei lá, é muita pressão em cima de uma garota.
O quarto que dividiam era modesto como quase todos do Convento. Havia uma cama de cada lado da porta, cada uma forrada com o mesmo conjunto branco de lençol, fronha e cobertor, todos tão ou possivelmente mais velhos quanto a Madre Juliana, com uma janela parcialmente oculta pelo espelho de uma penteadeira que usavam como armário. Suas únicas posses eram, além da cadeira de rodas estacionada entre as duas camas, um casal de ursinhos de pelúcia que haviam ganho em uma gincana de matemática na escola, alguns pentes e escovas de cabelo, alinhados sobre a penteadeira, e a única coisa que Ayla possuía e que era unicamente sua: um pingente de prata em forma de meia lua, guardado à sete chaves em baixo de seu colchão. Sandra havia dito que aquilo estava com ela quando fora deixada nas portas do Convento ainda bebê, e somente a Irmã e a amiga sabiam de sua existência.
Poucas pessoas na cidade sabiam sobre aquele Convento. Em geral alguns curiosos chegavam até ali pela estrada, enquanto outros ouviam rumores sobre as freiras que ali viviam isoladas. Algumas igrejas ligadas à Ordem ajudavam vez ou outra, quando precisavam de mais mãos para trabalhar ou de novas integrantes para habitarem entre os muros como noviças. Apenas Ayla fora abandonada ali para ser criada pelas freiras. Já Violeta havia sido transferida de um orfanato para lá à mando de um Padre que a conheceu após o acidente. Todas tinham suas histórias de como haviam chegado ao Convento de Santa Alice, como a própria Madre, que nascera ali de uma relação proibida, ou a Irmã Laura que, segundo o que ela lhes contara, viera foragida do sul do país após matar o namorado para evitar um estupro.
Todas tinham suas histórias.
–Não é justo. –Repetiu, deitando a cabeça no travesseiro.
–Não adianta reclamar. Basta dizer amanhã para a Irmã Sandra que não quer ser freira. Ela vai entender, tenho certeza. –Violeta apagou a luz, mergulhando o quarto na escuridão. –Boa noite, Ayla. Espero que tome a decisão que seu coração mandar.
–Boa noite. –Disse, virando para o lado e encarando a parede escura. Tentaria pensar em algo. Precisava existir outra opção, algo além e que não estava conseguindo enxergar.
Só esperava conseguir dormir com todo aquele peso nos ombros.
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A Última Cria
FantasiaAyla é uma noviça que pouco viu além dos muros do Convento de Santa Alice. Apesar de gostar da ideia de tornar-se freira, a garota anseia por desbravar o mundo e conhecer seus mistérios. Ela só não imaginava que esses mistérios viriam atrás dela, at...