Capítulo 4: Noite de Luar

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O sono não veio para Ayla naquela noite, como em muitas outras. O quarto parecia claro mesmo sem luz alguma acesa, o que a incomodava profundamente sempre que acordava durante a madrugada. Levantou devagar, temendo acordar a amiga, que dormia um sono tranquilo na outra cama, tocou o tapete que dividia o quarto com os pés descalços e caminhou até a penteadeira.

A parte superior da janela, ainda visível acima do espelho, mostrava o céu estrelado e decorado por uma lua grande e gorda. Não sabia explicar esse seu fascínio pela lua cheia, mas, sempre que podia, gostava de ir observá-la.

–Sei que prometi não fazer mais isso... –Sussurrou enquanto desencaixava o espelho do restante da estrutura de madeira da penteadeira, tomando cuidado para não deixá-lo cair. Apoiou um pé na cadeira em frente ao móvel, subindo com o joelho e trespassando a janela entreaberta. –Mas é mais forte do que eu, Vivi. Desculpa. –Disse, recolocando o espelho e saltando para a noite.

* * *

Outra que não dormia era a Irmã Sandra, debruçada sobre a escrivaninha de seu quarto enquanto lia uma das antigas Bíblias de que o Convento dispunha desde a sua fundação. Procurava qualquer coisa relacionada a lobos, crianças advindas da floresta ou mesmo passagens sobre demônios capazes de alterar suas formas.

Era loucura, ela mesma sabia, mas havia visto com seus próprios olhos aquele milagre quinze anos atrás. Agora aquela criaturinha indefesa estava prestes a sofrer o maior dos castigo pela sua incompetência em cuidar dela da forma correta. Não tinha o direito de dormir enquanto não descobrisse quem, ou o que, Ayla era.

Encontrou apenas uma citação capaz de abarcar suas dúvidas. A história de Nabucodonosor, descrito no livro de Daniel como um rei castigado por Deus e transformado em um animal que comia ervas como um boi, tinha pelos como os das águias e unhas como as das aves. Não era exatamente a descrição de um lobo, muito menos de Ayla. A menina podia até ter o apetite de um boi de vez em quando, mas nada que justificasse um castigo divino. Além disso, ela havia deixado a forma de animal para assumir a de uma humana, não o contrário.

Voltou a fechar o livro, apoiando os cotovelos na escrivaninha.

–Senhor, me deste um sinal naquela noite para que encontrasse essa garota. Eu a encontrei e cuidei dela como achava ser o correto, mas em algum momento falhei Contigo. Peço apenas que ilumine meu caminho mais uma vez, para que possa seguir com a missão que Tu me deu.

Aguardou por um sinal. O quarto estava silencioso, os nós dos dedos já brancos pela força que fazia para manter as mãos unidas e os olhos cerrados.

–Dediquei minha vida a Ti, Senhor. Sou sua serva até o último de meus dias. Por isso, peço ajuda. Mostre-me o caminho que devo trilhar, mostre a luz que devo seguir daqui em diante.

Esperou mais uma vez pelo chamado divino, porém nada aconteceu. Talvez o próprio silêncio já fosse o sinal. Talvez precisasse apenas continuar como estava e tudo daria certo, mesmo que ainda não enxergasse isso.

–Amém. –Disse, separando as mãos e desligando o pequeno abajur que iluminava a escrivaninha.

Quando levantou, porém, viu o quarto iluminado por uma luz azulada. Era noite de lua cheia e ela brilhava alta no céu, quase emoldurada pela janela de seu quarto. Aproximou-se do vidro para admirar o espetáculo da Criação, agradecendo ao Senhor por ter a sorte de viver em um mundo de tamanha beleza.

Foi então que viu alguém lá fora, próximo à mata. Teve certeza de que era Ayla em mais uma de suas escapadas noturnas. Sua garotinha não mudava mesmo com todos os castigos do mundo. Deixaria para lá dessa vez. A lua estava bonita demais para não ser apreciada naquela noite e Ayla já tinha problemas demais em que pensar.

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