Marlon endireitou-se na poltrona. Estava sentado com as pernas cruzadas, olhando sobre os ombros para a janela sempre que podia. Algo no rapaz chamava a atenção de Ayla, algo que ela não sabia dizer o que era.
–Então eu sou uma "Cria de Fenrir". –Repetiu o termo usado por ele, fazendo cara de quem pouco acreditava naquilo tudo. –E quanto a você? O que você é, afinal?
–Eu? –Marlon suspirou, transparecendo um profundo tédio. –Eu sou Muninn, um dos corvos de Odin, a Memória dos Deuses. –Respondeu. –Pelo menos, uma das encarnações dela.
–Encarnações? Tipo uma vida após a morte?
–Algo do tipo. Só que menos glamuroso. –Explicou o rapaz. –Como expliquei antes, a energia dos deuses está dispersa pelo universo. Às vezes, essas energias acabam encarnando em algumas pessoas, tornando-as portadoras daquele dom divino. Esses são chamados de Herdeiros de Sangue. É o meu caso. Só que, ao contrário dos outros, a minha divindade é a da "memória perfeita", por assim dizer. Eu nunca me esqueço de nada. Nem mesmo quando minha alma passa para outro corpo.
–Isso parece terrivel.
–Você se acostuma. Mas é, com toda a certeza. –O rapaz repousou os braços sobre os joelhos, olhando para o próprio colo. –Nunca esquecer dos problemas, das perdas, das traições ou mesmo de todos que já se foram. Lembro de cada um deles, de seus nomes, vozes, tudo! –Marlon socou o braço da poltrona com força. –É uma maldição. A certeza de que nunca descansarei nos salões do Valhalla, ao lado de meus companheiros e companheiras, é pior do que qualquer coisa no mundo.
–Sinto muito. –Era o máximo que podia dizer. –Nem sei como deve ser. Passar por tanta coisa assim, sabendo que um dia vai acabar.
–Já perdi as contas de quantas vezes já encarnei em famílias problemáticas, do tipo que mutila ou vende os filhos. Já fui escravo e senhor, plebeu e nobre, rico e pobre, mulher e homem, jovem e velho.
–Como você aguenta tanta coisa? Como não pensa em desistir?
–Já pensei. –Adimitiu ele. –E já fiz. Mas não adianta, já que sempre volto. Portanto, eu criei algumas regras. Nunca tirar minha própria vida é uma delas. Também não posso revelar quem sou aos mortais até que o Valhalla venha me encontrar. E, obviamente, devo servir como um dos conselheiros do atual Odin.
–Odin. Valhalla. –Ayla provou as palavras. –São essas pessoas que estão atrás de mim?
–A princípio, sim.
–Mas você não está do lado deles. –Rebateu a noviça. –O que mudou nessa vida para você se rebelar assim?
–Uma promessa. –Marlon voltou a olhar pela janela, evitando contato visual com Ayla. Uma lágrima escorreu por seu rosto. –Feita para alguém especial. Alguém que queria proteger você. Por isso irei cumpri-la até o fim dessa vida, não importando as consequências.
Ayla sabia o que era aquilo: amor, do tipo mais puro e inocente que pode existir. Decidiu não tocar mais naquele assunto, por enquanto, até que o próprio Marlon ficasse a vontade para falar ou quando a situação pedisse explicações.
–Aliás, eu queria saber se...
Súbito, o rapaz levantou da poltrona, agitado, correndo para olhar diretamente pela janela.
–Não, não pode ser. –Disse ele com o rosto colado no vidro. –Não podem ter nos achado tão rápido.
–Quem? –Ayla perguntou, mas não foi preciso uma resposta.
Do lado de fora, um raio cortou o céu.
Seguido pelo estrondo de um trovão.
* * *
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A Última Cria
FantasiaAyla é uma noviça que pouco viu além dos muros do Convento de Santa Alice. Apesar de gostar da ideia de tornar-se freira, a garota anseia por desbravar o mundo e conhecer seus mistérios. Ela só não imaginava que esses mistérios viriam atrás dela, at...