VI - Os inocentes descartados

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Clara chamou num grito:

- Doutor!

O Doutor estacou, de costas para ela. Colocou as mãos na cintura e com esse gesto afastou as abas do seu casaco. Ficou de pernas abertas e de cotovelos espetados. Pelo movimento dos ombros, ela notou que o Doutor tinha suspirado profundamente. Estavam na galeria alcatifada, iluminada pelos candeeiros de pé alto. Escutavam o ulular da multidão, a sua alegria e a sua exigência. Clara abraçou os próprios braços porque sentiu um frio repentino. Um arrepio de medo e de horror.

Havia mesmo alguma coisa a acontecer ali – o DJ dos Linkin Park, Joe Hahn, estava contaminado com uma rara substância verde que tinha assustado o Doutor, um senhor do tempo com mais de dois mil anos que viajava de uma ponta à outra do universo, que percorria várias eras e que tinha visto incontáveis maravilhas, desconhecidas e espantosas para qualquer ser humano.

E se o Doutor se tinha assustado, aquele era um desafio extraordinário.

Outro facto fundamental era que tudo estava a acontecer na Terra. O planeta encontrava-se outra vez sob uma ameaça que tinha todo o aspeto de ser alienígena – porque não havia nada naquele mundo que roubava o sangue frio ao Doutor.

- Doutor...

Clara aproximou-se devagar, mas parou alguns passos antes dele. Não o contornou, não o encarou.

- Não os podemos deixar, Doutor – implorou, a sua voz estremeceu.

- O jogo da final do campeonato europeu está a começar. Vou torcer pela Espanha. Tu viste a TARDIS, está toda decorada a preceito e não escondo que estou a apoiar a Espanha. Sei qual vai ser o resultado e poderá ser considerado batota, mas a emoção de presenciar o momento... Isso posso ter! Mesmo que saiba quem vai vencer, esta noite.

- Doutor, temos uma emergência aqui. Não podes estar a pensar num jogo de futebol!

- Alguma coisa mais simples... um jogo de futebol. Uma vitória.

- E, pelos vistos, já conheces o resultado. Doutor! Estou a falar contigo. Podias voltar-te? Muito obrigada.

O Doutor obedeceu e voltou-se. Manteve a mesma postura, mãos na cintura, cotovelos espetados, pernas abertas. Os seus olhos azuis estavam toldados por uma sombra inédita. Antes que ela continuasse a falar, ele disse:

- Clara, já disse que não posso fazer nada.

- Não acredito nisso. – Espetou-lhe um dedo no peito. – E não acredito que queiras trocar o que temos em Milton Keynes por um jogo de futebol, por mais épico que seja. E não estou a falar de um espetáculo de música. Estou a falar do que realmente temos em Milton Keynes. Uma ameaça que precisamos de resolver e que envolve a banda que vai atuar nesse espetáculo de música. Desde que aqui chegaste que tens tido esse pressentimento. Todas as fibras do teu corpo de senhor do tempo têm vibrado perante o mistério que aqui se esconde e que, acabámos de descobrir, está a apoderar-se do Joe Hahn.

- Joe Hahn?

- É como se chama o rapaz que tem aquele capacete verde nojento e que está paralisado no meio do camarim.

- Ah... o Joe Hahn... certo...

O Doutor revirou os olhos.

- Por isso, não faz absolutamente nenhum sentido que te vás embora – prosseguiu Clara. – Podes não saber como resolver o que se está a passar, mas haveremos de encontrar uma solução. Juntos. Eu ajudo-te. Sou a tua companheira! É para isso que serve uma companheira.

- Já te disse que não posso fazer nada – insistiu o Doutor, desagradável.

- Não acredito!

- Por que motivo os queres salvar? Aos teus miúdos revoltados? Estão todos condenados! Começou pelo... pelo... por esse com o capacete verde nojento e vai espalhar-se pelos outros. É só uma questão de tempo. E de oportunidade.

- E depois vai espalhar-se por todos os que os acompanham. Vai contaminar a Cammy, o homem grande, os seguranças. Vai atingir os milhares de pessoas que aqui estão para ver os Linkin Park atuar. Essas pessoas regressam às suas casas e, por sua vez, o mal chega aos seus familiares...

- A epidemia vai começar neste lugar e depois vai invadir toda a Inglaterra, a Grã-Bretanha, a Europa. Segue-se o mundo.

Clara bufou.

- Nós estamos aqui. A TARDIS trouxe-nos para cá para combatermos esta ameaça. Doutor, não podemos deixar todas estas pessoas e ir ver um jogo de futebol como se estivesse tudo bem. Estamos a ser cobardes! E estamos a condenar o planeta Terra. Isso é... isso é horrível!

O Doutor afirmou:

- Queres salvá-los. O teu interesse são os miúdos revoltados.

- Neste momento, são os que precisam da nossa ajuda imediata – concordou ela. – É o Joe que está contaminado. Os outros estão fechados com ele, dentro daquele camarim minúsculo, e pela lógica serão os próximos a ficarem naquele estado comatoso, com um capacete verde nojento.

- Porquê?

- Temos de parar a doença, Doutor! Não é porque... O que queres dizer com isso? Não tenho um interesse especial neles...

- Estás a protegê-los.

- Quero salvá-los. Sim, quero salvá-los! – repetiu Clara, imperiosa. – E depois salvamos a Terra, incluindo todos aqueles que estão no estádio a milhares de milhas de distância daqui para verem o teu jogo de futebol especial entre a Alemanha e a Espanha. Parece-me que também serão contaminados. Todos os humanos serão contaminados se não fizermos nada.

- Estás a pensar como uma professora... Na sala estão os teus alunos... outros miúdos, mais ou menos revoltados.

- Eu sou uma professora. É normal que pense como uma. E não, Doutor, não estou a pensar como uma professora. Estou a pensar como...

Clara calou-se. O Doutor fez um esgar.

- Estás a pensar como um Doutor.

- Talvez! – Ela apontou para o fim da galeria. – Eles chamaram um doutor e precisam de um doutor. Não é um qualquer doutor. Eles precisam do único Doutor que poderá combater aquela doença. Recuso-me a deixar-te abandoná-los e a condenar todos estes inocentes. O Joe, os amigos do Joe e os humanos que se seguem.

- E o que pensas fazer, Clara Oswald?

- Não sei. Qualquer coisa! E se falhar... também eu serei contaminada.

O Doutor exibiu a chave de fendas.

- Tu sabes o que isto é. É a minha chave de fendas sónica, o meu principal instrumento de análise, verificação e sondagem. Também pode ser uma arma... inteligente e pacífica. Um contrassenso, eu sei, porque eu odeio armas. É um objeto magnífico e multifacetado. Uso-o sempre e é-me tão precioso quanto a minha TARDIS. Chama-se assim porque funciona com... som. E aquela criatura feita de gosma verde gosta de... som.

Espantada, Clara abriu a boca.

- Descobriste isso... descobriste esse facto crucial e não me quiseste contar.

- Não consegui decifrar a criatura usando a minha chave sónica. E se não consigo usar a minha chave sónica, é como se estivesse de mãos atadas, cego e surdo. Estou numa câmara escura... sem direção e sem uma solução! Compreendes agora? – Acrescentou num murmúrio, que foi mais ele a falar para si mesmo: – Não espero que o faças, realmente.

Caiu um pequeno silêncio. A audiência do festival rugia e gritava.

- Bem... isso é um início, não é? – disse Clara.

- O que é um início?

- Sabermos que a criatura que atacou o Joe gosta de som.

Agarrou-lhe na manga do casaco e puxou-o de volta ao camarim.

- O que pensas que estás a fazer?

- Vamos regressar e vamos salvar a Humanidade, Doutor!

O Mágico e Os Ladrões de SomOnde histórias criam vida. Descubra agora