Samuel 0.5 (Parte 2)

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Boa leitura❤

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Boa leitura❤

— Protetor solar? Okay. Óculos de sol? Okay. Fone de ouvido? Okay. Coisas para higiene básica? Okay... — Passaram-se os dois dias que pareceram terem se arrastado. E ali estávamos nós dois. Letícia montou uma pequena mochila para levar até o aeroporto. Não tínhamos certeza de que conseguiríamos o tão sonhado voo para Manaus, mas se era melhor deixar preparado pequenas mochilas para o caso de uma viagem, deixaríamos. Estou tentando manter qualquer pensamento pessimista longe, porém não tenho certeza se isso é bom exatamente. A questão é que não podemos viajar sem cobrar a dívida, precisaríamos de mais dinheiro para isso e nossos pais iriam começar a indagar as coisas.
 
— Você é mesmo muito organizada, sabia? Já deve ter checado umas cinco vezes o que tem dentro dessa mochila! — A insultei enquanto ela colocava no lugar uma última peça de roupa.
 
— Desculpe se não consigo ser um bagunçado e porco igual a você. Podemos focar no objetivo? — Letícia entrou no carro abrindo a porta do passageiro e me ignorou completamente. Pelo visto ela quer manter as coisas exatamente no profissional a partir de agora, desde o dia que eu liguei para o homem estranho, ela sequer teve uma conversa informal comigo. Tenho uma impressão estranha sobre isso, mas se ela quer dessa forma...
 
— Como você fez para convencer seus pais sobre essa loucura? — Perguntou assim que nos arrumamos dentro do veículo e coloquei o cinto sempre tentando não esquecer.
 
— Eu menti. Simples... — sorri para ela que me olhou de forma estranha.
 
— Mentiu? Tipo... Falou o quê? Do jeito que você disse, tenho certeza que estou com uma cobra do meu lado agora. Não é tão fácil sair mentindo assim as coisas sem nenhum remorso — Ti riu e me olhou de cima a baixo. Ela parecia ficar observando meus detalhes a todo momento como se quisesse registrar na memória o que se passava. Acho que isso é só uma coisa da personalidade dela, uma ótima observadora.
 
— Sim, eu menti. Falei que tínhamos marcado uma viagem de fim de ano para o litoral — falei minha história sem nada demais. Minha mãe tentou tirar a verdade de mim, porém quando eu quero realmente uma coisa consigo mentir como uma cobra mesmo e então ela me deu um cartão, mandou que eu ligasse sempre que pudesse. O único problema que carrego é que ela acha que essa viagem serão apenas dois dias, mas eu e Letícia não temos noção de nada. Nem sabemos se o certo é ir para Manaus, mas parando para pensar melhor em tudo, podemos acabar desistindo. — E você? O que fez? Já que tem tanto remorso em mentir?
 
— Eu... Simplesmente não disse nada aos meus pais — ela assumiu e pareceu entrar em transe.
 
— Quer dizer que você está fugindo? Já pensou que se você não falar nada, eles podem morrer de preocupação? Ainda mais que nossos outros amigos também sumiram e...
 
— Samuel, apenas ligue a droga do carro! Não venha questionar o que digo ou deixo de dizer aos meus pais. Não é como se eles lembrassem que eu existo. Prefiro ir sem dizer nada — Letícia se exaltou e me arrependi de ter dito que os pais dela se preocupariam. Não esperava que ela dissesse isso. Como assim eles não se importam com ela? O quão real são essas coisas que ela tá falando? Guardei as perguntas para mim e liguei o carro que ronronou e seguiu caminho. O silêncio se tornou um pouco constrangedor e me senti na obrigação de trazer outro assunto à tona.
 
— Como foi sua noite? Eu esqueci de perguntar — arrisquei uma pergunta qualquer.
 
— Como qualquer outra. Eu dormi, né? —  disparou Letícia sendo bem ríspida, mas não pense ela que vou deixar barato dessa forma. Estou disposto a ter conversas amigáveis no fim das contas. Olha a loucura que estamos prestes a fazer.
 
— Alguém acordou com a pá virada pelo jeito. Se você já é pessimista, imagine nos dias de estresse.
 
— Tá dizendo que estou chata? Que tal nem conversarmos hoje para te deixar mais confortável?
 
— Eu disse. Se falar qualquer coisa, você já vai querer virar com uma metralhadora na minha direção — olhei com um sorriso convencido na direção dela e a mesma pareceu desconfortável, finalmente percebendo de que estava sendo um pouco grossa comigo.
 
— Talvez você tenha razão... — admitiu ela sem olhar nos meus olhos, não quer concordar de que não está certa. — Estou um pouco incomodada, só que você precisa me dar um desconto. Há um desaparecimento dos nossos amigos, estamos indo cobrar uma dívida e eu saí de casa sem falar nada com meus pais. Como eu disse, pra que eu não te trate mal, é melhor não conversarmos, a não ser que seja extremamente necessário — ela puxou o celular e os fones do bolso da mochila em seguida.
 
— É sério, que estamos a ponto de fazer uma viagem e você quer manter distância? Não vou deixar...
 
— Não tem nada demais para conversarmos. Você que está enxergando coisas. Não sei se tu sabes, mas o aeroporto é pertinho daqui, não dá nem tempo de desenvolver um assunto — ela revirou os olhos e pareceu procurar a música certa no celular.
 
— Por que você não... Desabafa? Sei lá. Acredito que seja isso que as pessoas fazem quando precisam soltar um peso ou quando vão ao psicólogo! Então se quiser, pode desabafar — dei uma ideia antes que ela pudesse colocar uma faixa no fone.
 
— E por acaso, você é meu psicólogo? Talvez eu não tenha o que desabafar — ignorei sua constatação, mas não teve muito o que fazer. Não demorou muito e ela se isolou atrás dos fones. Será que durante os dois dias que se passaram antes de hoje, aconteceu alguma coisa na casa de Letícia? Uma briga ou algo assim? Quando éramos amigos, ela costumava entender quando eu estava mal e vice versa, será que eu ainda consigo entende-la?
 
A viagem ao aeroporto era curta e podia chegar a no máximo vinte minutos. Saímos do bairro Areal e seguimos para o bairro Três vendas. O estacionamento lá perto era bom e o homem que era chefe do local fez um excelente pacote para que o carro ficasse parado na sombra pelos dias que se passassem. O pacote poderia durar no máximo uma semana, se caso ultrapasse o prazo teria que pagar a mais. Interiormente eu torcia para que nossa viagem não durasse mais que sete dias. Letícia ficou esperando impacientemente enquanto eu me despedia tristemente de meu carrinho com minha mochila já atracada nas costas. Minha lata velha ficaria sozinha e estava torcendo para que não acontecesse nada de ruim com ela.
 
— Samuel, pare de drama e vamos logo. O carro não é um filho seu! Sem contar que se acontecer algo de ruim a essa coisa velha, já vai tarde _ Letícia falou com os braços cruzados e tirei a mão do capô do carro.
 
— Você é mesmo muito ranzinza. Não existe aquele ditado que panela velha, faz comida boa? — Começamos a caminhar em direção a entrada principal do aeroporto cor cinza. Ele nunca foi muito grande como outros de São Paulo e do Rio, mas serve muito bem para qualquer um que quiser fugir do sul.
 
— Tem panela que não dá pra salvar.
 
— Ué, agora você quer conversar comigo de novo? Achei que eu não fosse seu psicólogo! — Falei sarcasticamente e ela semicerrou os olhos na minha direção.
 
— Okay... Talvez devêssemos conversar. Satisfeito? Pelo menos assume que esse carro já deu.
 
— Não estou ganhando na loteria pra trocar toda semana. Se quiser disponibilizar a grana, aceito sem reclamações — paramos em frente a entrada e observamos as pessoas passarem.
 
— Já parou para pensar que esse cara pode nem aparecer? — Letícia disse enquanto avaliava as unhas. — Se ele não vier, acabou a aventura.
 
— Esqueci de perguntar como ele é. Como vamos adivinhar se não é uma pessoa que está do nosso lado? — Comecei a pensar melhor. A nossa volta, por enquanto só tinha algumas crianças pirralhas acompanhadas dos pais atrapalhados. Todos com a cabeça abaixada para o celular.
 
— Estou esperando o pior desse cara que vem nos encontrar. Já pensou como vai engana-lo sobre como você sabe sobre a dívida?
 
— Irei tentar coagir ele a dizer porque está devendo.
 
— Olha só! — Ela fez um gesto com as mãos como se algo estivesse iluminando sua mente de repente. — Tive uma ideia do que podemos fazer em seguida e o que pensei é muito bom.
 
— Por que não diz logo? — Falei estranhando suas apresentações sobre sua ideia simultânea. Ela continha um sorriso travesso no rosto mostrando que algo não é era tão bom quanto parecia.
 
— Minha sugestão é que devemos dar meia volta com nossas mentes brilhantes, entrar naquele carro, quero dizer lata velha e ir até uma delegacia contar aos policiais o que sabemos. Pronto, fim da história. Sem dívida, sem viagem — ela cruzou os braços satisfeita enquanto eu semicerrava os olhos em sua direção.
 
— A sua ideia seria muito boa se ela não fosse horrível — constatei. Letícia com certeza é o lado racional da nossa parceria. Se é que isso seja uma parceria. Estou aqui em busca de nossos amigos e trazer um pouco mais de aventura não pode ser ruim pra minha vida monótona de sempre — Acho que quem não viu o jornal hoje, foi você.
 
— Bah, como assim?
 
— Você lembra daquele idiota chamado Brian? Ele já foi até a polícia. Por mais que seja difícil acreditar que ele chegou até lá sem bater o carro, e contou seu depoimento, mostrou as filmagens para os policiais. Pelotas inteira sabe que teve uma atualização do caso.
 
—  Nossa...  Estava tão aérea hoje de manhã que nem vi notícias.
 
— Pois é. Os policiais decretaram que vão enviar investigadores para Manaus uma semana depois para que se organizem nessa viagem e acreditem na informação de Brian. Nós podemos esperar os policiais fazerem tudo sozinhos depois ou então vamos para Manaus antes e tentamos encontrar algo por contra própria — disse tudo de forma convencida como se fosse uma página da Wikipédia. Quando acordei e vi os noticiários mais cedo, tratei de desligar a tv imediatamente para que nem minha mãe nem Erick vissem os acontecimentos recentes. Se minha mãe soubesse do desaparecimento dos meus amigos, ela não acreditaria na história mentirosa que contei. Talvez agora ela já saiba de tudo e esteja me ligando loucamente. Mas por enquanto não preciso atendê-la. Para isso que existe o modo silencioso do celular, não é?
 
— Independente de tudo, Sam — afirmou ela dando ênfase ao meu apelido. Alguém avisa a Letícia que isso não me incomoda? A única incomodada é ela, quando a chamo de Ti. — deveríamos ir à delegacia. Nós sabemos de algo que Brian não sabe que é a descrição do cara do Crepúsculo. Ele é um possível suspeito.
 
— Na verdade... Esse cara é alguém normal que esteve na festa. As vezes foi apenas coincidência ele ter interagido com todos nossos amigos.
 
— Tanto você como eu, sabemos que não é apenas uma coincidência — apontou para o meu peito e franziu os lábios com uma expressão brava. Ela tem que erguer a cabeça quando quer se impor contra mim já que é mais baixa. Tadinha, pelo menos é fofa. — tu que está querendo inventar desculpas para ir nessa viagem, seja lá qual for o motivo disso.
 
— O motivo é descobrirmos porquê nossos amigos sumiram, oras! — Declarei cínico e quando ela ia dizer alguma coisa, alguém falou a nossas costas:
 
— Você deve ser o Santaninha! — Tanto eu quanto Letícia nos viramos quase que imediatamente em direção a voz grossa que lembrei de escutar durante a chamada dois dias atrás. Aquele negócio de me chamar de Santaninha de novo?
 
— Sim? — Perguntei procurando a pessoa e foi então que percebi que o homem que falara era quinze centímetros menor do que eu, portanto menor até mesmo do que Ti.
 
— Imaginei que era você. Seu cabelo bagunçado é igual ao do Santana inútil. Mesmo corpo desnutrido também — disparou o homem falando. Eu e Letícia o encarávamos desacreditados. O homem estava usando óculos amarelos com bolinhas pretas. Seus cabelos eram ralos e castanhos. Ele anda com um terninho vermelho e uma calça combinante, o cara intimidante da dívida não era bem assim o que esperava.
 
— Prazer, me chamo Samuel — estendi a mão em sua direção. O baixinho dispensou o cumprimento com um suspiro revirando os olhos. Até parece que vou passar uma doença a ele.
 
— Legal... Me chamo Antônio. Mas pode falar Toninho, se assim desejar. E você, quem é? — Ele abaixou os óculos virando-se na direção de Letícia.
 
— Letícia, amiga do Samuel — apresentou-se e o homem dos óculos amarelos pareceu entediado diante da informação.
 
— Se for namorada, não ligo por esses rótulos. Caso queira dizer a verdade. — Antônio afirmou e neguei com a cabeça rapidamente.
 
— Nada ver, senhor! Não diga besteiras, não podemos nem se considerar amigos direito... — Letícia se explicou como se devesse algo.
 
— Paramos por aqui as apresentações. Vamos direto ao ponto, o que desejam?
 
Não pergunte da dívida. Fiquei pensando sem parar. Não saberia o que falar, caso acontecesse.
 
— Cobrar a dívida como foi proposto. Sabemos que você trabalha aqui nesse aeroporto e é em relação a isso que viemos cobrar — estabeleci sem esmorecer. Letícia me encarou analisando a firmeza de minhas palavras. Logo em seguida, ela me olhou com um sorriso convencido.
 
Sou mesmo uma cobra. E ela está certa de novo, meu Deus!
 
— E o que mais vocês iriam querer no aeroporto? Sou um simples gerente do controle de cargas. Não há o que pedir sobre...
 
— Queremos duas passagens de avião! Pra hoje! — Letícia interrompeu rápido demais.
 
— Ah! Meros tolinhos! Vocês realmente vieram até aqui achando que eu iria comprar uma passagem para vocês? Sem contar que tem a questão de que vocês são tão novinhos... Não vão sair viajando por ai, sozinhos — ele organizou sua roupa com alguns ajustes.
 
— Eu não quero saber o que você pensa sobre nossa idade ou motivos. Você vai pagar essa dívida, querendo ou não. Se vira e consiga essas passagens — conclui sem paciência e Letícia me olhou com olhos arregalados. Até eu me impressionei com minhas palavras. Mas se quiséssemos mesmo as tais passagens, o jeito era fingir sobre o conhecimento da dívida.
 
Toninho pareceu ponderar o que disse com olhos duvidosos.
 
—Você não faria isso. Você não colocaria minhas fotos pelado com meu amante na internet. Isso foi há anos. Nem posso imaginar o que minha esposa pensaria. Santana me salvou aquele dia, impedindo que Michelle chegasse em casa e me pegasse na cama com Maurício — Enquanto ouvíamos a confissão, Letícia e eu nos entreolhamos. Não consegui abandonar meu olhar convencido. Fiz exatamente o que falei que conseguiria para ela. Coagi ele mesmo a contar o motivo da dívida.
 
— Seria uma pena mesmo! Imagina que escândalo se Michelle descobrisse! — Fiz uma expressão de decepção. — Você não quer causar mágoa para ela, não é mesmo? Então retribua o favor que meu pai fez a você para o filho querido dele. Consiga um lugar no avião para nós dois e não vai ter problemas. Simples! — Não tinha certeza se deveria me sentir bem por estar cobrando a dívida que um cara devia ao meu pai. Do jeito que meu pai foi bondoso quando era vivo, ele nunca voltaria para cobrar essa dívida, porém eu nunca seria alguém tão bom quanto ele e só consigo ter meus amigos na mente nesse momento.
 
— Exatamente! Não é melhor irmos deitando o cabelo para negociar os lugares no voo? — Letícia voltou para a conversa. — Resolveremos isso tão rapidinho que vai parecer que essa dívida nem existiu.
 
— Talvez eu consiga o que vocês tanto querem, mas antes preciso saber se vocês vão me devolver a fotos para que eu as destrua. Só assim, meu segredo irá comigo para o túmulo.
 
— Quando voltarmos de viagem, você terá as fotos em mãos sem problemas! — garanti e Antônio continuou desconfiado, mas se virou e seguiu em uma direção pedindo para que nós o seguíssemos. Eu e Letícia acompanhamos seus passos vacilantes para onde quer que ele estivesse nos levando.
 
Durante a caminhada, Toninho contou sobre toda sua vida. Ele não parecia nada com o cara que tinha conversado conosco pelo telefone, explicou sobre ter se casado com Michelle muito jovem e que fora a pior decisão de sua vida. Naquela época, seus pais disseram que seria a melhor decisão e que ele e a moça tinham uma química inegável. Mais tarde, Antônio conheceu o primo de Michelle. Sim, seu amante era primo de sua esposa! Ele explicou que nunca tivera um sentimento tão arrebatador por alguém como teve por Maurício. Letícia e eu fomos escutando como se fosse uma novela mexicana do SBT. Tinha partes que ele se perdia falando demais e tanto eu quanto Ti fazia comentários cochichando sobre a pobre vida do homem. Depois da caminhada chegamos em um lugar que ele nos apresentou como Departamento dos Registros de Voo. Não tinha muita gente lá dentro porque segundo o que Toninho explicou, era horário de almoço. Era uma sala com vários computadores em cima de mesas, Toninho parecia nervoso quando passou o cartão para que entrássemos no local.
 
— Vocês estão fazendo eu cometer um crime! E tudo por chantagem. Se algo acontecer ao meu emprego, vou puxar vocês para o buraco também! Eu sempre sigo as regras e...
 
— E não queremos saber se você vai se ferrar ou não, afinal se formos para o buraco contigo — Letícia apontou para o peito do homem baixinho — fotos nuas suas vão ser a próxima cara da internet!
 
Olhei para ela perdido. Nós dois sabíamos que essas fotos poderiam estar em qualquer lugar, menos com a gente, nunca postaríamos nada sobre esse cara.
 
— Pelo visto, eu não sou a única cobra aqui — cochichei no ouvido dela enquanto Toninho acessava os registros de um computador.
 
— Tive que entrar no papel dessa furada que tu me enfiou, né? — ela devolveu a pergunta e revirei os olhos.
 
— Quer achar os nossos amigos ou não?
 
— Qual voo que vocês querem? Se ele estiver cheio, não poderei fazer nada pra ajudar — Toninho interrompeu nossa pequena troca de farpas.
 
— Manaus. Nós queremos ir para o norte.
 
— O que raios vocês querem fazer nesse lugar? — Ele arrumou a roupa engomadinha e continuou a digitar.
 
— Apenas pague a dívida. Precisamos dar explicações?
 
— Assim fica parecendo que tão fugindo da polícia — Ele clicou em mais algumas coisas com o mouse e surgiu algo no computador. — O próximo voo para esse lugar vai ser logo. Tem certeza que é isso mesmo que querem? Tem quatro lugares sobrando para os passageiros. E a passagem é o olho da cara. Não tenho esse dinheiro.
 
— Então, nos coloque no voo de forma clandestina... — Letícia soltou sua sugestão, mas no momento seguinte pareceu desistir da ideia e Toninho se aliviou por não ter que fazer isso.
 
— Pode ser! Dê um jeito de nos colocar no voo sem pagar — exigi e Letícia me olhou imediatamente como se aquilo tivesse sido a pior loucura que já disse.
 
— Aí é que vou parar na cadeia mesmo, vocês adolescentes são loucos? — Toninho pareceu perder a cabeça.
 
— Ele que é louco. Por mim, isso acaba aqui! Certeza que entrar nesse voo clandestinamente vai dar tri errado — Ti apontou para mim. Eram dois contra um.
 
— Pode dar tri errado ou... — ponderei sorrindo diabolicamente. — Pode não dar.
 
— Sério, que você tá considerando isso, Sam? — Letícia me olhou nos olhos.
 
— Sério, Ti — olhei para Toninho que fez uma cara assustada.
 
XXX
 
Passaram-se uma hora desde que tínhamos chegado no aeroporto e eu já estava impaciente. Antônio saíra para resolver como entraríamos naquele avião sem passagem. Letícia ficava rodopiando na minha frente falando uma lista entre os prós e os contras do que estávamos prestes a fazer.
 
A maioria das coisas que ela dissera, entrara em um ouvido e saíram no outro para mim. Não adiantava ficar discutindo mil possibilidades antes da coisa acontecer.
 
Ela pareceu tão preocupada que nem sequer percebeu que o tempo todo eu fiquei concordando com simples palavras como “beleza”, “Tá bom” e “Certo”.
 
Apesar de realmente não ter dado a mínima para as coisas que ela ficou falando, até que foi engraçado ficar olhando Letícia dando a louca.
 
Repentinamente, um silêncio sepulcral baixou sobre ela quando Toninho retornou com sua expressão nervosa. Junto dele, tinha um homem e uma mulher uniformizados carregando um grande carrinho coberto.
 
— Adolescentes, estes são Aline e Ricardo! — Toninho nos apresentou para os outros dois que sorriram desconcertados. A mulher, tinha  um cabelo solto até o pescoço e o homem era um negro magrelo que parecia ser bem simpático. — Aline e Ricardo, estes são Letícia e Samuel, meus sobrinhos.
 
Toninho mentiu. Que ótimo! Para dar certo essa história, já estava carregando mentiras demais.
 
— É um prazer conhecê-los! — Ricardo disse apressado. — Parece que estão em uma situação um tanto complicada, mas nós entendemos perfeitamente porque querem fugir.
 
Que situação Toninho havia inventado sobre nós? Pela cara de Aline e a do outro, parecia que tanto eu quanto Letícia éramos alienígenas.
 
— Enfim — a mulher deu continuidade — para que vocês entrem no avião, terão que se esconder neste carrinho — ela apontou para o mesmo. Olhando mais atentamente percebi ser um carrinho de limpeza.  Aline removeu a lona que cobria o carrinho e dentro tinha alguns produtos de limpeza e um espaço razoável para que entrássemos. — Eu e Ricardo somos da equipe de limpeza das aeronaves e vamos limpar o seguinte voo que vocês querem invadir.
 
— Meu Deus... — Letícia soltou um suspiro colocando a mão na testa. — E depois você não quer que eu pense que pode dar errado? — Ela se virou para mim, suspirando.
 
— Fique calma, ninguém presta atenção na equipe de limpeza — assegurou Ricardo que parecia um pouco risonho. — nós somos invisíveis. Entramos no avião, faremos a limpeza e vocês dois se escondem nos bancos de tráiz — O homem pareceu satisfeito.
 
— Nós entraremos no avião, faremos a limpeza e vocês se esconderão nos bancos do fundo! Pode deixar as coisas claro, Ricardo. Só não assassine o português. Vocês todos deveriam falar sem essas gírias e com o tempo verbal correto — Toninho corrigiu o homem de forma seca. Desde o momento em que nos encontramos com ele mais cedo, Antônio não disse uma gíria além de não falar com sotaque.
 
— Por acaso é você que vai nos colocar dentro do avião? — Letícia se virou para Toninho. — Pois, então. Não é! Então deixe Ricardo falar do jeito que quiser! Vamos parar de perder tempo. Como nós entraremos nesse carrinho?
 
Toninho escancarou a boca com a patada que levou de Letícia e tive que me impedir de rir. Ele é tão certinho que chega a irritar. Ricardo pareceu feliz diante da pequena defesa de Letícia.
 
— O garoto pode entrar primeiro — sugeriu Aline e arregalei os olhos, mas segui para o carrinho que carregava o cheiro de substâncias de limpeza, me sentei no lado direito completamente desconfortável e apoiei minha mochila no colo.
 
— Eu sei que o espaço é pequeno, mas deve servir — Aline afirmou e instruiu Letícia a sentar na outra ponta do carrinho de modo que as pernas dela ficaram ao meu lado e as minhas ficaram do seu lado. Estava bem apertado, mas era o que tinha. Letícia não conteve o olhar constrangido pelas nossas posições, mas pareceu aliviada por parte do seu corpo estar distante do meu. Também agradeci internamente por isso.
 
— Tudo certo com os guri? — Ricardo pareceu fazer o uso da gíria de propósito e Antônio cruzou os braços insatisfeito e bufando. Letícia e eu assentimos as cabeças em resposta. Tirando o fato de que estávamos entrando em um avião clandestinamente, cobrando uma dívida descabida e enfiados em um carrinho muito estranho, estava tudo bem com nós dois, com os guri. Achei graça do meu pensamento.
 
Ricardo jogou a lona por cima do carrinho e tudo escureceu. Toninho pareceu discutir mais alguma coisa com o pessoal da limpeza e logo o carrinho passou a andar fazendo com que eu tomasse um susto.
 
— Tá assustadinho, é? — Letícia debochou da minha cara. Não conseguia enxergar o rosto dela, mas sabia que tinha um sorrisinho ali. — Não era você que estava animadinho pra esse plano?
 
— Ah, pare de ser boba. Você é quem deve tá morrendo de medo — respondi. — eu nunca fiquei animado pra nada, só tive que aceitar que esse era o único jeito de viajarmos.
 
— Na verdade, podíamos ter ido até a polícia, sabe? Mas alguém aqui não queria — ela disse.
 
— Eu sei que você tá adorando ser um pouco fora da lei.
 
— Fora da lei? Como que posso deixar claro pra tu que isso não é um filme?
 
— Não deixe. Como já expliquei, só quero encontrar nossos amigos.
 
— Realmente, tá se jogando de corpo e alma nessa investigação.
 
— Pelo menos não fugi de casa — soltei me arrependendo logo em seguida.
 
— Além de ser um investigador estranho, não sabe que é melhor não se meter na vida dos outros — o carrinho pareceu diminuir a velocidade em uma curva e não dei uma resposta para ela. Não era bem aquilo que queria ter dito.
 
— Eu espero que dê certo — escutamos Aline conversar com Ricardo do lado de fora enquanto empurravam o carrinho.
 
— Tem que dar certo. Imagina se fossemos demitidos por isso? É muita loucura — Ricardo a respondeu. Letícia e eu continuamos escutando.
 
— O Toninho é muito doido. Segundo a história maluca dele, esses dois que estamos ajudando são sobrinhos traficantes dele e parece que a garota está grávida do garoto. Os pais da menina querem mata-lo. Que mundo estranho.
 
— Não podíamos deixar os jovens serem caçados pelo pai da menina. O certo é coloca-los no avião mesmo. — Ricardo concluiu.
 
— Traficantes? Isso é sério? — Letícia cochichou do outro lado do carrinho e soltou uma risada seca.
 
—  Qual vai ser o nome do nosso filho? — Indaguei dando risada também.
 
— O Toninho não tinha história melhor pra inventar, não? Eu estou imaginando meus pais te procurando no bairro com uma espingarda agora! — falou indignada.
 
— O Toninho vive uma verdadeira novela, achou mesmo que a história mentirosa dele seria de baixa qualidade? — ficamos rindo por alguns minutos.
 
— Nosso filho pode chamar Toninho, vai ser uma grande homenagem — ela comentou depois e comecei a viajar em uma realidade alternativa em que eu fosse um traficante. O magrelo do morro? Quais seriam minhas tatuagens intimidadoras?
 
Sem que pudéssemos prever, o carrinho parou bruscamente e nós dois voamos para lados diferentes no escuro. Letícia caiu em cima de mim e minha perna colidiu contra a dela. Nossas testas bateram e senti a respiração dela próxima ao meu rosto. Ficamos completamente embaraçados e entrelaçados, tentei me soltar a todo custo e ela também. Começamos a ouvir conversas do lado de fora, por isso contivemos nossa vontade de gritar. Eu tentava mover meu quadril, mas um de seus braços e perna estavam impedindo de que eu me movesse e não conseguia enxergar qual seria o movimento certo para sair daquela posição horrível.
 
— Isso não pode estar acontecendo... — escutei Letícia sussurrar. — O melhor é você ficar parado e não se mexendo pra tentar sair de perto de mim. Quanto mais você se mexe, mais eu sinto seu corpo e não vai adiantar nada, sem contar que tem a chance de fazermos barulho.
 
Letícia infelizmente falou o óbvio e ainda podia sentir seu rosto e até seu cabelo em minha bochecha. O nível que aquilo era desconfortável era inexplicável. Ela estava muito tensa em cima de mim assim como eu e o máximo que podíamos fazer era escutar a conversa de fora do carrinho.
 
Ricardo e Aline pareciam estar conversando com uma terceira pessoa que aparentou ser a autoridade ou algo do tipo no serviço deles. A tensão aumentou no ar.
 
Depois de alguns leves minutos consegui soltar um braço meu com cuidado e respirei um pouco.
 
— Isso ajuda você se mexer um pouco? — Indaguei ainda baixinho.
 
— Acho que sim — ela se moveu com a cintura e nossos corpos se chocaram mais uma vez que fechei os olhos com a força da vergonha que me subiu, mas ao mesmo tempo me senti estranho. Fazia tempo que uma mulher chegava tão perto assim de mim.
 
Eu tenho problemas ou estava achando aquilo prazeroso de uma forma sexual? Aqueles cochichos e posição. Nossa, sou muito idiota.
 
Me arrepiei no mesmo momento. O que eu mais queria era sair daquele carrinho.
 
Chutei meus pensamentos para longe e quando eu percebi, Letícia foi para longe se desvencilhando da minha perna. Nos mantivemos respirando profundamente durante alguns segundos e o carrinho voltou a se mexer novamente.
 
— O que estamos passando pelos nossos amigos... — Letícia começou a comentar. — Eu espero que aqueles putos estejam vivos e bem.
 
Maldito carrinho. Eu ainda estava arrepiado, mas não consegui conter o risinho que soltei no escuro que Letícia não podia enxergar.
 
O tempo passou mais um pouco e o carrinho parou mais devagar e pela a última vez. Esperamos ansiosos a espera de quando a lona seria removida para que saíssemos daquela tortura. Outros minutos se arrastaram e pensei melhor se queria mesmo sair daquele carro e encarar o rosto de Ti. Não tinha sido nada e era até uma boa história pra contar depois. Ela montada em cima de mim no escuro sem que pudéssemos enxergar?  Não, não é uma boa história pra contar depois.
 
A lona foi retirada como um vento,  tamanha foi sua velocidade. A luz amena do avião atravessou meus olhos. Letícia pulou do carrinho como um gato e a segui com uma maior lentidão. Aline e Ricardo nos encarou.
 
— Demorou para tirar a lona porque precisamos limpar primeiro — explicou Aline que colocou a lona de volta a seu lugar no suporte de limpeza. — parece que agora tá tudo certo e é aqui que nos separamos.
 
— Nós agradecemos, Aline e Ricardo. Vocês não tem ideia do tamanho do favor que fizeram. — Ti agradeceu e olhei em sua direção. Seus cabelos estavam bagunçados caoticamente e suas bochechas com um rastro vermelho. Vergonha? Até eu estava corado, acho.
 
— Agradecemos mesmo — reafirmei o que ela disse e olhei nos olhos dos outros dois.
 
— Temos que ir! Fiquem debaixo das poltronas. As aeromoças entraram primeiro, mas elas não olham para debaixo do banco. Não façam barulho e se misturem aos passageiros quando pelo menos uns dez tiverem entrado no avião — tanto Aline quanto Ricardo reforçaram suas regras e saíram da aeronave, ligeiros como se nunca tivessem entrado para limpar.
 
— Tomem cuidado, guris! Tráfico não é um bom caminho! — Ricardo disse antes de ir de vez.
 
— O que vamos fazer, Samuel? — Letícia perguntou como se percebesse somente agora que estávamos fazendo aquilo de verdade.
 
— Apenas faremos e já estamos fazendo. Confie em mim que vai dar certo. Tem que dar. Estamos a caminho de Manaus.
 
Letícia pareceu se agarrar nas minhas palavras e correu para se esconder debaixo das poltronas sem tirar os olhos de mim. Fiz o mesmo.
 
O que podíamos fazer a partir desse momento era torcer para que desse tudo certo. E que a informação de que nossos amigos estavam em Manaus, fosse realmente verdadeira.

Obrigada por ter lido até aqui!

Não se esqueça da estrelinha e até a próxima!

Nós Odiamos O Amor (CONCLUÍDO)Onde histórias criam vida. Descubra agora