Letícia 0.4

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A noite foi turbulenta, rolei na cama tentando enfiar o sono na droga da minha cabeça o tempo inteiro

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A noite foi turbulenta, rolei na cama tentando enfiar o sono na droga da minha cabeça o tempo inteiro. Resumo? Eu estou mais morta do que viva.
 
Samuel e eu ficamos discutindo o que fazer. Assim que terminamos e decidimos o que exatamente seria feito, ele me deixou em casa.
 
O " Tchau Ti!" que ele disse me deixou irritada e o "Tchau Sam" que eu devolvi com um sorrisinho falso me deixou irritada ao quadrado. Não somos amigos! Nos unimos agora por um bem maior que são os nossos amigos. Quando entrei dentro de casa, meus pais nem perceberam minha saída como sempre faziam, não notavam que eu também estava vivendo dentro daquela casa. O relógio mostrava que eram dez e pouca e nem eu tinha percebido quanto tempo passei com Samuel. No fundo me pegava desejando não ter que voltar para minha casa vazia e minhas emoções radicais. Meus pais são uns verdadeiros fantasmas...
 
Depois de entrar no quarto e escolher a camisola que me deixava mais confortável ou seja, menos desengonçada, eu caí no colchão e deixei minha mente caminhar pelos pensamentos mais aleatórios.
 
15% de mim estava considerando descer e pegar o lanche vistoso na geladeira, mas já tentei me prometer mil vezes parar com essa vício chamado lanche da madrugada.
 
20% estava pensando na Barbie. Vai me entender!
 
15% estava imaginando como seria viver no meu anime favorito. ( Sim, eu tenho uma leve queda por personagens irreais.)
 
45% pensava em como meus amigos passaram a noite. Com comida? Seguros? Todos vivos?
 
Aquilo era o que mais tinha me deixado acordada e com certeza perdida. Se eles nunca mais voltassem, o que seria da minha vida? Eu não teria ninguém... Rapidamente tentava sumir com qualquer resquício de imaginação negativa. Não que realmente tenha funcionado.
 
5% se perdia em... Samuel. Droga, que merda é essa? Ele foi até mais do que legal essa noite. Apesar de ser irritante de vez em quando nos momentos em que eu tentava levar a situação a sério. Eu não fazia ideia do quanto ainda podíamos tagarelar sem se estranhar, contudo ainda existiram os momentos da noite em que ele se perdia me olhando como se eu fosse um mar conflituoso de perguntas, coisas que eu nunca poderia sequer saber para responder. Seus olhos ficavam em evidência quando estava louco para descobrir algo. E não era só sobre nossos amigos, talvez mais...
 
No fundo, eu tinha pena dele. Perdeu o pai, foi chifrado, é confuso as vezes e odeia o amor. Eu também odeio e não posso culpa-lo, acredito que nem todos têm a dádiva de viver um conto de fadas como a internet romantiza.
 
É, no fim das contas não eram apenas 5% que estava pensando em Sam. Era muito mais.
 
Quando minha mente não aguentou mais ficar desperta, apaguei. O sono pareceu uma simples olhada no paraíso e então fui socada caindo no inferno novamente. A realidade.
 
O relógio mostrava que era hora de ir para escola. Levantei jogando minha camisola preta para longe e fiz aquele agradecimento mental que é meu rito todas as manhãs. Obrigada espelho, por não estar aqui! Eu não suportaria ter que me encarar sem nenhuma roupa por cima, isso com certeza seria a visão do terror, é claro.
 
Ri com meu auto bullying e não demorou muito para que eu colocasse a roupa do dia rapidinho e descesse para o meu café. Minha mãe já estava acordada com olheiras mais visíveis do que outra coisa, ela parecia ter saído de The Walking Dead, tadinha. Meu pai nem deve ter se levantado ainda. Por que, Deus? Por que viver no meio dessa guerra entre meus pais? Um seria o Estados Unidos e o outro a Alemanha. Eu tenho medo das analogias que minha imaginação cria de manhã, de verdade. No outro dia eu estava fazendo comparações deles com o Homem de ferro e o Capitão América.
 
 — Bom dia, querida! — Minha mãe disse sem nem ao menos olhar para mim, apesar de acostumada com a indiferença, ainda sinto a dor lá dentro.
 
— Bom dia, mãe! — Tentei esboçar alguma expressão falhando miseravelmente, já que eu não conseguia sorrir quando se tratava da minha família. Eu sei que obviamente os amo, mas esse amor se perdeu completamente desde que meus pais me colocaram em segundo plano devido as suas brigas idiotas. No início eu chorava descontroladamente, porém hoje me considero adaptada a situação. Não posso negar que sim, sonho que um dia eles aceitem a se separar, só que esse cenário permanece apenas no sonho. Meus pais nunca teriam coragem de fazer isso. Seria como se eles afirmassem que fomos um caso perdido por vários anos e nunca existiu uma família perfeita. Todos que nos acompanham nas redes sociais descobririam a grande farsa que formamos. Uma filha com baixa autoestima, um pai viciado em dinheiro e uma mãe sem voz.
 
Parei de divagar e peguei metade de uma fatia de pão ignorando todas as outras opções presentes na mesa. O suco, o queijo, as rosquinhas, o achocolatado e até mesmo a Nutella são itens que evito passar os olhos. Eles só destroem ainda mais minha aparência ridícula. O tempo todo pensando em calorias. Oh, maldição!
 
Assim que terminei de comer meu pão com manteiga e mesmo que ainda estivesse com fome, segui para a escola, ignorando as turbulências da minha barriga. Eu gostava de chamar isso de monstrinho da fome. Ele é muito estranho. Uma hora não quer comer nada, no minuto seguinte quer uma pizza acompanhada de Coca Cola e um grande pote de açaí como sobremesa.
 
O monstrinho da fome é um grande idiota! Ele fica tentando me enganar. Vai comer aquele bolo de chocolate, não vai fazer nenhuma diferença no seu peso, hi hi... Ele fala o tempo todo. Meu Deus, alguém me indica um hospício?
 
O caminho até a escola acaba me distraindo e quando vejo, meu colégio já tinha aparecido em minha vista. Desci do ônibus desanimada. Até que algo me chamou atenção. Na frente da entrada estava o diretor com uma expressão séria e ele vinha acompanhado.
 
Os pais dos meus amigos. A mãe do Igor e a da Manuela carregavam rostos preocupados junto do pai de Bruno, todos pareciam estar conversando sobre um assunto sério e os alunos que passavam em volta parecem interessados no que eles conversavam. Andei de supetão e quando vi, já conseguia escutar em partes o que eles diziam.
 
—  Isso é muito estranho... Parece que tudo está conectado. Como todos sumiram ao mesmo tempo? — Disse a senhora Tomáz, mãe de Manu. Era a que carregava a voz mais emotiva e esganiçada do grupo.
 
— Eu só quero meu filho dentro de casa, diretor — A mãe de Igor disse incisiva e passando a mão pelos cabelos.
 
—  Vocês não querem se dirigir ao meu escritório? Podemos resolver melhor... — O diretor disse calmo tentando apartar o desespero dos pais.
 
—  Vamos! O mais rápido possível, preciso imediatamente saber se é caso de polícia — O senhor Pereira disse com um rosto carregado, parecia que ele carregava um peso nas costas. Era o pai de Bruno. — Não foi só o meu filho que sumiu, mas a minha esposa e a caçula também, elas saíram para ir ao mercado e não deram mais notícias...
 
Sopesei as palavras do senhor Pereira. Na família dele, não desapareceram somente Bruno, mas a mãe dele e a irmã também. Meu coração acelerou com essa nova informação. Eu ainda tinha esperança de que meus amigos iriam aparecer e dizer que estavam bem, somente um pouco bêbados, mas os desaparecidos não eram só eles no final e sim mais pessoas. O diretor e os pais resolveram sair daquele local em público para discutir o estranho assunto no escritório. Notei que nenhum dos pais de Luana compareceram ali para saber o que acontecera com a filha. Como sempre, eles estavam sendo mais uma vez uma péssima família que só lembrava dela na hora de criticar o seu estilo. Minha curiosidade inflamou, mas não pude fazer nada, a não ser caminhar para a primeira aula do dia.
 
A manhã foi particularmente chata. Tive que aturar minha professora de biologia tirando melecas do nariz e grudando na mesa como ela sempre fazia enquanto realizávamos a prova. Ela tentava disfarçar, porém acabava só chamando mais atenção para seu ato esquisito. Todo mundo ria e fazia memes pelas costas. Como ela podia ser tão cara de pau? E de onde surgia tanta meleca? Ri com os comentários zoando nossa professora nojenta.
 
Não tive que lidar unicamente com isso. Eu fui encarada o tempo todo também. Samuel. Por estranho que pareça, o idiota não tirou os olhos de mim. Por acaso, eu estava andando com uma melancia e um biquíni no corpo? Não entendi seus olhares. Me pareceu que ele queria se comunicar apenas pelos os olhos. Ele que se dispusesse a vir até mim para conversar sobre nosso plano de investigadores.
 
Isso mesmo. Vamos dar uma de detetives hoje a tarde.
 
Seus olhos ficaram tão chatos em certo momento que quase quis me cobrir com folhas de caderno para fugir daquela imensidão azul que eu encarava sempre quando éramos amigos.
 
Agradeci mentalmente quando o alarme da escola tocou e chegou a hora de ir embora. Eu estava cheia de Samuel. O meu único dilema era que teríamos que nos encontrar novamente mais tarde para fazer nosso plano estranho.
 
Em casa, logo depois do meu almoço nada grandioso que foi nada mais nada menos que um arroz carreteiro preparado por minha mãe que deveria ter saído brevemente para sua aula de Yoga. De verdade, eu não entendia Yoga. As pessoas costumam fazer posições estranhas para relaxamento, mas não sei como isso não as deixam mais nervosas ou como não se quebram durante aquelas posições.
 
Terminei de comer e larguei o prato na pia, minha preguiça extremamente mais forte como sempre, tinha vencido. Voltei para o quarto e realmente não tinha o que fazer até a hora que Samuel viria me buscar. Meu tédio era visível na situação, até que olhei para minha cômoda em um dos lados do quarto. Uma tesoura preta e grande o suficiente para que eu fizesse algo.
 
Não deram cinco minutos e lá estava eu... Não, eu não resolvi matar ninguém hoje, ainda não é o dia certo. Estava dizendo... Lá estava eu. Segurando a tesoura na altura do meu rosto... Calma, também não vou me matar, pode ficar tranquilo.
 
Cortei. Uma mecha do meu cabelo caiu a minha frente pousando no chão do banheiro. Eu estou de saco cheio desse cabelo grande! Eu já queria fazer isso a um tempo, mas não tivera coragem, assim fui cortando mecha por mecha até que ele ficasse curtinho na altura do pescoço, arregalei os olhos quando soltei a tesoura. MEU DEUS! Eu realmente fiz isso...
 
Por que do nada me deu a louca de querer mudar?
 
Corri do banheiro para fugir do meu reflexo. Passei as mãos no cabelo me sentando na cama. Espero que meus pais não vejam tão cedo, não que eles vão realmente esboçar alguma opinião exatamente... Mas mesmo com tudo que tinha feito nos últimos minutos, não conseguia parar de sorrir, eu gostei da minha nova aparência! Por estranho que pareça.
 
O tempo foi passando e quando notei estava próximo das três horas e precisava me arrumar. Comecei a tirar todas as roupas do meu guarda roupa desesperada em busca da peça perfeita. Eu não sabia porque estava com aquela necessidade de me sentir bonita hoje... Depois de muito procurar, decidi pela legging preta e a blusa do panda. Eu amava aquele look. Com muita coragem, retirei o pano preto do espelho do meu quarto, aquele que tanto odeio, olhei por cinco minutos e abri um pequeno sorriso. Não demorou muito para que jogasse o pano preto lá de novo como se enxergar minha aparência inteira da cabeça aos pés me queimasse. Uma buzina soou e me assustei.
 
Fui até a janela e olhei para a rua. Samuel tinha chegado. Passei um gloss correndo sem poder me produzir muito mais e peguei minha bolsa também. Desci as escadas apressada e quando vi, já estava do lado de fora da casa com meu novo estilo.
 
— Uau — pronunciou Sam e não sabia se era bom ou ruim.
 
— Tá! O que foi? — Me desespero com sua expressão.
 
— Você... Cortou o cabelo...
 
— Ai merda! Fiquei horrível né? Devo estar parecendo uma atração do circo dos horrores! — Entrei em pânico. Sabia que no momento que tinha pegado a tesoura tinha sido a decisão errada, era mais uma loucura da minha cabeça. Fiquei em transe sem pensar em mais nada... Não sabia se seguia para o carro com Samuel ou corria para casa no intuito de me esconder do mundo. Eu literalmente só quis me transformar um pouquinho com esse cabelo curto, mas eu sou uma droga mesmo.
 
Não conseguia olhar para mais nada e obviamente só pensava em coisas ruins naquele exato momento. Não consegui me mexer...
 
— Ei! — Nem percebi que ele tinha se aproximado de mim com passos ligeiros. Estava em um pequeno transe por ter piorado minha aparência mais do que ela já era ruim. — Você não está feia, Ti. Está exótica e ficou muito bom! Vai, Não vou te soltar até que diga em voz alta que está linda.
 
Ele estava me segurando pelos braços enquanto meus olhos ainda estavam aflitos e fechei-os na tentativa de me acalmar não pensando em minha aparência negativamente. Abri os olhos novamente e vi que ele ainda não tinha me soltado. Isso é sério? Não nos falamos por anos e hoje ele já me segura pelos ombros?
 
— Eu vou ter mesmo que dizer que sou linda? — Indaguei confusa franzindo a testa. Ele soltou um suspiro e fez que sim com a cabeça. Aquilo era idiota, mas eu queria que ele me soltasse logo.
 
— Tá okay... A pedido do senhor Samuel, digo aos céus e a todos os deuses que sou a pessoa mais linda da porra toda! — Disse sem nenhuma animação e revirando os olhos.
 
— Eu quero empolgação — Ele exigiu e fiz cara de desgosto.
 
— Uau! — Soltei meu sorriso mais falso. — Eu sou muito linda! Como não tinha reparado nisso ainda? Meu Deus, eu amo minha aparência! Perfeição! — Bati palmas sem abandonar o sorriso falso.
 
— Acho que já pode ser considerado um avanço... — Ele me largou relutante e desconfiado da minha afirmação.
 
— O que foi isso Samuel? — Perguntei cruzando os braços e caminhando até o carro.
 
— Você sabe que acabou de dar uma crise na minha frente? — Ele me olhou dentro dos olhos enquanto seguia para o banco do motorista. — Eu nunca tinha visto alguém tão assustado e com medo de não agradar com sua aparência tão de repente assim.
 
— Não foi nada... Todas as garotas tem um momento como esse, acredito eu — Tentei finalizar o assunto. Não queria deixar transparecer para ninguém a insegurança do meu corpo. Quando ele ligou o carro ainda me encarava como se fosse um detetive carregando uma sobrancelha arqueada, o que me fez ver o que ele vestia.
 
— Uau — Foi a minha vez de pronunciar. — Por que raios você está de terno e calça social?
 
— Pensei que tinha que me adequar as roupas de um investigador — Ele me olhou galanteador e não consegui esconder a vergonha alheia que sentia por isso.
 
— Samuel, eu tenho que falar... Você tá ridículo! Essa roupa não tem nada a ver com o seu estilo e dá pra saber quando você passou gel para deixar o cabelo diferenciado. Tá parecendo que você está indo para uma festa de casamento ou uma reunião com os chefes de uma empresa grande que nem existe aqui em Pelotas.
 
— Obrigado, por me destruir, Letícia. Eu acabei de fazer você acreditar que está linda, perfeita e maravilhosa. E vem você que me destrói dizendo que estou um lixo. Assim, adorei a tua retribuição. — Ele virou o carro na rua seguinte e deixei escapar minha risadinha.
 
— Foi mal, mas tu não me fez acreditar que sou linda... E no fim das contas eu só fiz um favor sendo sincera. Você tá parecendo mesmo um mauricinho — tentei não ruborizar com as palavras dele. Samuel realmente pensa que sou linda? Acho que faz anos que ninguém me elogia dessa forma.
 
— Quem dera, se eu fosse um mauricinho — Ele soltou uma piscadinha que tive que olhar para outro lado para não ficar constrangida. A coisa mais estranha era o fato da gente conversar como se fossemos amigos, ele me olha como se tivesse intimidade. Que momento que vamos esclarecer o porquê de termos parado de conversar?
 
— Eu vi uma coisa que acho que seria importante para nossa investigação — Tentei mudar de assunto para que o silêncio não recaísse. — Quando cheguei na escola hoje, as mães do Igor e da Manu estavam conversando com o diretor junto com o pai do Bruno. Eles já perceberam que os filhos sumiram, só que esse não é ponto que quero chegar. A irmã e a mãe do Bruno também desapareceram quando saíram para ir ao mercado.
 
— Puta merda, não tem como ser uma pegadinha no fim das contas, mesmo! — Ele desviou os olhos de mim para a direção.
 
— Eu acho que não, Sam. Por mais que quiséssemos muito, o sequestrador ou assassino, seja lá o que for, pegou os celulares de nossos amigos e mandou mensagem para os pais se passando por eles para que a polícia não fosse acionada rapidamente, só que os pais começaram a se dar conta da situação hoje de manhã.
 
— Mas se a polícia for chamada para resolver o problema, você acha que temos que continuar nossa investigação clandestina? — Samuel indagou e pensei um pouco, não parecia o certo deixar pra lá.
 
— Acho que não devemos parar de investigar porque já temos algumas pistas e se for para descobrirmos a verdade, logicamente vamos chegar nos nossos amigos mais rápido.
 
— Eu espero que eles estejam bem... — Era o que eu esperava também. Senti minha testa começar a transpirar, estava muito quente ali. Normalmente na nossa região, a maior parte do ano carrega as temperaturas mais frias do Brasil e eu já me acostumei com a friagem, mas em dias de verão que o relógio atinge seus trinta graus, a tarde fica chata como o inferno. Olhei para a porta em busca de abrir a janela para receber um vento refrescante na cara, o vidro se abria com manivela. É um carro velhinho, mas parece prestar no momento. Comecei a girar a manivela no intuito de me refrescar. Girei e girei e nada da janela abrir!
 
— Se você quer abrir a janela, saiba que não vai rolar. Esse carro é velho, mas eu amo tanto minha lata ele... — Ele fez carinho no painel e tentei soltar um sorrisinho como se não fosse um problema.
 
— Então por que sua janela tá aberta? — Apontei para o vidro que estava abaixado.
 
— Como eu disse, carro velho! Essa janela não fecha faz um seis meses — Me segurei para não rir. Que situação complicada a do carro.
 
— Desculpe, Sam, mas vou acabar derretendo aqui.
 
— Se for por mim, não vejo problemas — Revirei os olhos como resposta. — Só que é pelo calor, não é? Abre o porta luvas. Deve ter alguma coisa pra você se abanar lá dentro!
 
Abri o porta luvas e uma mistura de essências subiu em direção meu rosto. Era um cheiro de perfume misturado com chocolate e algo azedo. Tentei ignorar e puxei a revista amassada do fundo. Tentei desenrolar as páginas para me ventilar.
 
— Que bagunça! — Deixei escapar. Provavelmente aquilo foi errado da minha parte. Ele estava sendo muito legal em emprestar o carro e querer encontrar nossos amigos. Eu não podia fazer nada se nosso transporte era uma lataria com uma bagunça terrível da parte de Samuel.
 
— Desculpe-me, senhorita certinha. Eu não sou lá o homem organizado que muitas garotas esperam encontrar — Reparei que ele corou ao olhar para minha cara. Comecei a me abanar com a revista que pareceu a melhor hipótese e tentei focar que logo chegaríamos a casa da festa em Monte Bonito. A cidade vizinha que tínhamos ido na festa da outra noite. Foi então que reparei na capa da revista...
 
—  O que que é isso? — Tinham várias mulheres seminuas em várias partes da revista. — Samuel, eu não gostaria de pensar que... Mas por que raios tu tens um revista cheia de mulheres com a teta quase caindo pra fora? — Não me aguentei e ri. Percebi que ele apertou as mãos no volante tentando fingir que não tinha escutado minha pergunta.
 
— Eu tenho necessidades de vez em quando e... — Ele começou e joguei a revista no porta luvas o fechando em seguida. Fechei os olhos tentando tirar a cena que se passava em minha cabeça.
 
— Você podia ter dado qualquer desculpa. Menos essa! Isso é tão ultrapassado, e a internet? — Cruzei os braços rindo muito e apenas acompanhei a forma que ele foi ficando vermelho cada vez mais.
 
— Promete que não vai contar para ninguém? — Vi ele morder os lábios de nervoso.
 
— Parece que eu tenho o Samuel Santana na minha mão. Isso é impagável!
 
— Promete? — Ele me olhou com olhinhos pidões.
 
— Prometo. Eu não sou tão má assim, mas o que tenho de linda tenho de esperta na hora cobrar um favorzinho se precisar... — Pisquei na direção dele como uma diabinha. Quando notei, Samuel já havia estacionado o carro em frente à casa da festa que tínhamos ido. A casa estava um desastre. Copos, papel higiênico, restos de comida e coisas quebradas estavam jogadas por todos os lados. Saí de um carro bagunça para me deparar com outra bagunça. É um dia bagunçado.
 
Andamos pelo cascalho até a porta da frente, Samuel foi andando antes de mim com sua roupa engomadinha. Ele se aproximou da porta de entrada para bater e ver se alguém atendia, mas a porta já estava aberta.
 
— Olá? Tem alguém em casa? — Sam chamou esperando pela resposta. Depois de alguns segundos ele me encarou perguntando silenciosamente o que fazer em seguida se ninguém atendesse. Fiz um sinal de meia volta pensando que o certo seria voltar mais tarde. No momento em que iria voltar para o carro, Samuel entrou na casa e arregalei os olhos.
 
— Samuel! Saí daí, seu louco! Isso pode ser considerado invasão de propriedade — Falei da forma mais alta e baixa que pude. Se o morador estivesse em casa, não queria ser acusada por nada.
 
— Não é invasão. É uma vasculhada. A porta tá aberta e não tem ninguém em casa? É no mínimo suspeito, meu caro Watson! — Ele sorriu e continuou caminhando no hall de entrada averiguando o local e obviamente se achando por fazer uma referência conhecida de Sherlock Holmes. Ele ficou observando a casa com cuidado enquanto eu olhava em volta no jardim de entrada para ver se ninguém aparecia. Quem sabe eu não encontrasse uma desculpa do porquê meu amigo entrou como um doido dentro da casa.
 
— Você vem comigo ou não? — Samuel gritou e tomei um susto diante a sua atitude escandalosa.
 
Adentrei a residência com passos vacilantes. Aquilo parecia errado e certo ao mesmo tempo. Como uma coisa poderia ser tão correta e incorreta junto? Eu sou uma maluca. O chão da casa é amadeirado e há cadeiras para todos os lados. O cheiro de cerveja no ar é perceptível demais. Já havia se passado mais de um dia da festa e o dono não tinha arrumado o lugar ainda?
 
— Como você é medrosa — Samuel pôs a língua para fora me insultando. Mostrei o dedo do meio para ele. Continuamos andando e minha tensão de ter invadido uma casa foi diminuindo. Passamos pela sala de estar desarrumada e chegamos na parte de trás da casa em que as portas de vidro entregavam para uma grande piscina que tinha várias coisas na água boiando.
 
Saímos daquela parte e nos deparamos com a escada que levava para o segundo andar da casa, tinha alguém jogado nos degraus. A pessoa roncava sem parar e dormia toda torta, o dono da festa. A única coisa que conseguia me recordar era que o nome dele era Brian.
 
Samuel se aproximou dele com cara de nojo e começou a cutucar o cara no ombro. Brian estava com seus cabelos loiros revirados com as mechas espalhadas, tinha um cabelo maior que o meu. Sua barba rala fazia presença conforme sua baba escorria de dentro se misturando aos pelos.
 
— É WHISKY OU CERVEJA QUE VOCÊS QUEREM? — Brian gritou de repente se levantando.
 
— Não queremos nada disso na verdade... — Comecei a falar enquanto o loiro se espreguiçava e esticava suas costas doloridas do sono mal dormido.
 
— A festa acabou? — Brian fez a pergunta olhando em volta estranhando por completo.
 
— Pelo visto sim, não tem mais ninguém na casa — Sam respondeu.
 
— Parece que eu dei uma perdida no horário. Sempre acontece! Se a festa acabou, o que vocês ainda fazem aqui? Eu não quero mais sexo, gente! Eu estou exausto — Ele ajustou o shorts seguindo até a cozinha na nossa frente.
 
— Esse cara é maluquinho — Samuel cochichou na minha orelha e soltei uma risada enquanto continuávamos acompanhando o estranho dono da casa.
 
— Eu dei duas festas em seguida. Não foi o meu recorde, mas foi interessante de qualquer forma. Meus pais devem voltar ainda essa noite e eu tô bem ferrado, tchê! — Brian começou a rodopiar na cozinha em busca de algo para comer enquanto eu e Samuel acompanhávamos seu ritmo lento com os olhos. — Ah, perdão. O que vocês vieram fazer aqui mesmo?
 
— Estamos procurando algumas pessoas. Antes de ontem viemos na sua festa com uns amigos e eles meio que desapareceram, sabe? Viemos ver se tinha alguma pista por aqui. — Samuel deixou claro para o homem de ressaca o que fazíamos ali. Ele nos encarou de volta escutando a história com pouca atenção de verdade.
 
— Nas minhas festas... Muitas pessoas desaparecem, entendem? Mas ninguém vem procura-las. Todo mundo é meio foda-se para os meus convidados... Só que vocês dois precisam clarear minha mente. Como que eram os amigos de vocês?
 
— Eram 4 adolescentes — Comecei a explicar. Manu é uma garota preta e não muito alta. O  Bruno é um cara preto de pele marrom clara e mais alto que só ficava perto dela. Igor é um ruivo e Luana é uma gótica.
 
— Eita... Muita descrição para minha pequena mente. Eu sou meio lerdo, não sei se vocês já sacaram isso! — Sim, já sacamos. Ele jogou umas batatinhas chips na boca mascando e mostrando os dentes. — Não consigo me lembrar de nenhum desses pirralhos, sinto muito!
 
Eu e Samuel nos encaramos com expressões perdidas. Obviamente não pensamos em nenhum plano B mesmo, achávamos que o dono da casa se lembraria de seus convidados, mas aparentemente ele não lembra nem do nome dele.
 
— MASSS.... — Brian gritou de repente nos assustando e jogando seus cabelos loiros como um comercial de shampoo. — Talvez eu ainda posso ajudar vocês!
 
— Como? — Samuel perguntou muito curioso.
 
— Essa casa é LOTADA de câmeras! Eu seria um doido se não tivesse algo gravando esse lugar 24 horas por dia. Eu sou rico como vocês já perceberam e posso até mostrar as gravações das câmeras pra vocês dois, mas tem uma condição! — Ele levantou o dedo frisando sua condição. Como ele era ridículo, sério mesmo que dependeríamos disso?
 
— Vai fala! Que suspense idiota! — Percebi a cara de irritado do Sam.
 
— Vocês têm que me ajudar a limpar a casa inteira antes que meus pais cheguem. Só assim mostro a gravação das câmeras! Isso aqui tá um lixão e meus pais não podem descobrir que eu fiz festa, se não serei esfaqueado. Prontos para faxina? — Ele soltou um tapinha nas minhas costas.
 
— Que folgado do caralho! — Samuel soltou quando ele saiu da cozinha nos deixando sozinhos. — Vamos demorar um século!
 
— Estamos a mercê dele. Ou limpamos isso ou não temos pistas. Fica com a parte da frente que eu fico com a piscina — determinei nossas tarefas e começamos a limpeza, esquisita limpeza.
 
Eu enchi um saco de lixo com copos de bebida e limpei o fundo do jeito mais rápido que consegui. Peguei a rede da piscina e tirei diversas coisas daquela água imunda. Camisinhas (prefiro não pensar se elas estavam usadas ou não...), Doritos que estavam murchos, calcinhas, cuecas e biquinis (essa parte eu fiz com uma luva que encontrei jogada). Imagine a quantidade de micróbios? Organizei as cadeiras por último e levei o lixo para o latão na frente da casa.
 
Tive um vislumbre do que Samuel teve que cuidar. Ele retirou papeis higiênicos, mais copos e um cocô da parte do jardim da frente ( prefiro não pensar se eram as fezes de um humano ou não...)
 
Não faço a mínima ideia do porquê, mas Brian ficou cobrando uma limpeza perfeita de Samuel que só revirava os olhos ou xingava com raiva. Dei uma risada escondida. Samuel conseguia ser bem sujo com palavras e ele ficava até que divertido com isso. Limpamos a cozinha, a escada e a sala de estar. A casa foi tomando uma aparência mais organizada e no fim parecia que não tinha rolado nenhuma festa naquele local.
 
Passaram-se três horas e meia até eu e Samuel cairmos exaustos no sofá. Apoiamos um no ombro do outro sem se importar. Aquilo foi esquisito, mas o apoio parecia a melhor ideia no momento. Apesar de tudo, ele ainda carregava seu cheiro de creme na cabeça. Eu sei que ele usa uma das marcas famosas de cabelo, mas nunca comentei com ninguém.
 
— Terminaram? Fizemos um bom trabalho, não acharam? — Brian disse fazendo uma pose positiva. Samuel desencostou de mim fazendo com que eu quase caísse em cima dele no sofá.
 
— Você não fez porra nenhuma... — Bati no ombro de Sam o repreendendo. Se ele ficasse arranjando briga com o Brian poderíamos perder a chance de ter as gravações das câmeras!
 
— Ai, eu vou fingir que não escutei isso — Brian soltou um suspiro indignado. — Me acompanhem até o segundo andar.
 
Subimos a escada rapidamente e fomos em direção a uma espécie de escritório. Brian ligou o computador que apareceu uma imagem da Hello Kitty como tela de fundo. Soltei algumas risadinhas e não demorou para que ele prosseguisse abrindo os arquivos da câmera. Ficamos alguns minutos olhando as gravações que estavam em modo acelerado. Foram imagens um tanto peculiares. Uma mulher que subiu em um homem e o fez de cavalinho, além de um cara que tirou toda a roupa e ficou balançando o negócio dele em pé na mesa de sinuca foram algumas das imagens que nunca mais vão sair da minha mente de tão traumatizantes.
 
Samuel e eu estávamos nervosos. Passaram-se mais alguns minutos até que paramos em algo que as câmeras da saída dos fundos registraram. A boca de Samuel escancarou como a minha. Nossos amigos...
 
Eles estavam sendo arrastados desacordados para dentro de uma van, tinham homens de máscaras que os trancaram na parte traseira do veículo e alguns minutos depois, o carro saiu dirigindo com toda a velocidade.
 
— VIXE! Deu ruim... Parece que seus amigos foram sequestrados! Tadinhos, provavelmente já foram mortos — Brian disse sem nenhum remorso e eu o fuzilei com olhar. Samuel percebeu e fez um gesto para que eu me acalmasse.
 
— E agora? Estamos em um beco sem saída novamente — Estendi as mãos para o alto. Na gravação não dava nem para enxergar a placa do maldito veículo.
 
— Não, vocês não estão — Brian comentou surpreendendo a mim e ao Sam.
 
— Como assim, cara? — Samuel se desesperou. — Você sabe de alguma coisa?
 
— Vendo o vídeo desse iminente sequestro me fez lembrar de algo — Brian titubeou e prosseguiu. — Eu os vi na festa. Eles disseram alguma coisa sobre planos para ir a Manaus!
 
— Manaus? — Indaguei sem controlar minha ansiedade.
 
— Isso mesmo, aquela cidade conhecida no norte do país que todo mundo já ouviu falar. Posso ter ficado bem bêbado e drogado, mas isso eu me lembro bem. Esses caras de máscara preta disseram que iriam para Manaus! Falaram sobre um certo plano que tinha de ser realizado. Pra dizer a verdade, achei o papo deles bem estranho naquela hora, mas não pareceu tão relevante no momento.
 
— A sua irrelevância levou nossos amigos para o outro lado do Brasil!  Nós vamos ter que procurá-los tão longe assim? — Samuel perguntou e só pude pensar que nossos amigos estavam mais encrencados do que eu poderia imaginar?
 
Uma viagem para Manaus?
 
O motivo deles terem sido levados ainda era o grande  mistério.

Nós Odiamos O Amor (CONCLUÍDO)Onde histórias criam vida. Descubra agora