A serpent

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Gaara por vezes cobiçava o privilégio que as outras pessoas tinham em serem desatentas em alguns momentos. Seu senso excessivamente perspicaz e sua memória fotográfica eram uma faca de dois gumes: por um lado, o tinha levado à uma profissão na qual ele conseguira ter rápida ascensão devido ao seu raciocínio afiado e capacidade de dedução. Pouca coisa passava ilesa do crivo do olhar gélido, e sua própria personalidade intimidante e irredutível acabou sendo muitíssimo benéfica em seu trabalho, levando-o a se consagrar como insigne investigador da polícia. Contudo, é típico da natureza humana tentar sabotar os próprios sentidos algumas vezes, existem coisas que voluntariamente desejamos não ver, coisas que preferimos que se dispersem no limbo da ignorância e não nos atinjam. Para Gaara, essa sabotagem espontânea era uma tarefa ardilosa. Ele sempre via, era como se os olhos esverdeados pudessem capturar cada pequeno pixel de uma imagem e a partir daí montá-la por si só em sua própria mente prodigiosa. E, uma vez vendo, ele também sentia, e era por isso que somente caminhar por um simples corredor o tinha levado a um baú de memórias diversas às quais há muito tempo ele não acessava. Observava o brilho fosco do piso, a coloração neutra das paredes, os quadros dispersos que as decoravam e recordava de todas as vezes que fizera aquela travessia, em contextos diferentes do que estava-o levando ali agora. Bateu na porta que ostentava uma sequência de números específica e não demorou para que seus olhos novamente trabalhassem desenfreados sobre a figura do homem que surgira na sua frente. Guardara para si, ainda mais, todos os mínimos detalhes dele. Todavia, como já declarara, em contextos diferentes.

– Parece que alguém se divertiu noite passada. – Gaara encapsulou rapidamente seus devaneios e preferiu comentar em seu costumeiro sarcasmo quando instantaneamente percebeu as marcas arroxeadas que adornavam o pescoço de Naruto. Observou o loiro vagar o olhar em sua direção por alguns segundos, em desentendimento, até assimilar o comentário e soltar um breve riso constrangido, levando por reflexo uma das mãos até o próprio pescoço para inutilmente tentar ocultar as pequenas marcas que ainda persistiam, mesmo depois de três dias.

– Vem, entra! Obrigado por ter vindo. – Naruto desconversou, abrindo a porta para o outro num riso ainda sem jeito, dando passagem para que ele entrasse no apartamento e logo voltando a fechar a porta. Gaara arqueou uma das sobrancelhas quando seus olhos repousaram na imagem que tinha da sala, tirando poucos segundos para analisar o que via antes de se pronunciar.

– Reunião em família? – Questionou irônico, ostentando o melhor sorriso que poderia simular. A sala do apartamento do Uzumaki, mesmo se tratando de um lugar espaçoso, parecia cheia e particularmente mais desordenada. Ainda que conhecesse muito bem a bagunça natural do loiro, os papéis, documentos e fotografias estavam espalhados pela mesa de centro de modo especialmente caótico, e algumas cadeiras haviam sido posicionadas aparentemente num improviso para abrigar todos os presentes. Sem cerimônias e sem dispor de muito tempo, caminhou em direção a uma das cadeiras vagas, tomando assento enquanto levava sua atenção até o sofá, observando a figura apática do Uchiha, a qual ignorou, e pousando o olhar sobre Sakura, observando os olhos da mulher estreitos em sua direção e não perdendo a oportunidade de cumprimentá-la, num jeito cortês que não disfarçava o tom satírico. – Sakura, é sempre um prazer revê-la. – A ironia que suas palavras detinham fora ainda mais evidenciada pelo estreitar mais contundente do olhar que vinha em sua direção. Sabia da inimizade que a mulher nutria por si, e teve de prender um sorriso satisfeito com a provocação bem sucedida.

– Gostaria de poder dizer o mesmo. – Sakura rebateu implicante, torcendo o canto dos lábios em antipatia, quase como uma birra. Anos atrás, a rosada tinha conhecido Naruto exatamente no período em que ele e Gaara estavam passando pelo término do relacionamento, acompanhou todo o processo delicado e doloroso do encerramento do laço e, principalmente, as recaídas quase intermináveis que eles tiveram. Pôde assistir de perto a gangorra de sentimentos na qual Naruto esteve e de como o brilho do loiro diminuía a cada vez em que ele voltava à estaca zero em relação a Gaara. E mesmo que Sakura racionalmente soubesse que aquela inconstância era provocada por ambos os homens e que ninguém poderia culpar somente uma das partes, ela tinha criado dentro de si uma grande desconfiança em relação ao ruivo. Involuntariamente, sempre acabava associando a presença de Gaara a um grande problema, e tal receio inflamava ainda mais agora, sabendo que Naruto finalmente estava construindo uma nova relação com outra pessoa.

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