24 Entre alma e coração

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Théo

Me sentei no gramado com as pernas esticadas, não conseguia fazer o movimento para cruzá-las, mas estava tentando relaxar um pouco. A bomba da tomografia havia caído sobre mim no mesmo dia do exame. Uma equipe de médicos junto com Flávio me acompanharam durante todo o dia. O desgaste da cartilagem do meu joelho direito era total, as séries de procedimentos feitos nele não ajudaram em nada e a última lesão custou parte do osso, expliquei sobre a dor que  limitava meus movimentos, um dos médicos sugeriu a micro perfuração, que consistia em  pequenos furos locais no osso para induzir um sangramento, liberando junto com o sangue fatores pró inflamatórios que poderiam ajudar na formação de um tecido parecido com cartilagem para diminuir o impacto articular. Eu só tinha uma pergunta... A dor... Ela iria embora definitivamente? Ou eu teria que conviver com os comprimidos e com os choques elétricos de dor naquela porra? E a verdade, é que eles não sabiam me responder. Mas a opinião sobre o futebol, era quase unânime. Com sorte, jogaria mais três anos. Três anos de puro sofrimento.

Lis se sentou ao meu lado, apoiando a cabeça em meu ombro. — Você está bem, gatinho?

Balancei a cabeça negativamente. — Não, Lis, acho que nunca mais vou estar bem.

— Théo... Eu sinto tanto por você, quero que você fique bem, e mesmo que tenhamos que voltar para a Itália, não vou deixar que você jogue mais. Isso é desumano.

Sorri tristemente me virando para ela. — E desde quando a humanidade importa, Lis? Eu sou um produto... Mais caro do que eu merecia ser. Se estou fazendo a diferença, me vendem por um preço maior, se estou atrasando o time, me trocam por algum outro jogador. A única escolha que eu tenho, desde os dezoito anos, é se eu vou de classe econômica ou executiva para onde mandarem.

Lis afagou meu cabelo, e me deitei em sua perna aproveitando o carinho, queria que fosse a Ross... Mas com ela, só me era permitido sonhar.

— Eu sinto que estou fazendo com você a mesma coisa, amor. Você sempre cuidou de mim, me defendeu, me ajudou a seguir meu sonho, mesmo com meu pai sendo contra. E agora eu te prendo. Esse casamento que está te separando daquilo que você realmente quer...

Segurei sua mão, dando um beijo em sua palma.  — Não... Eu é que fiz cagada, Lis, devia saber que Ross não aceitaria isso. Eu estou pensando seriamente em desistir de tudo por ela. Ela falou sério, não vou ter outra chance. Por acaso a encontrei em um restaurante, e ela estava com outro... Então, ou eu sou mesmo muito pouco para ela, ou ela já se convenceu de que não vou desistir do casamento.

— Escuta, gatinho, eu sei que você é louco por ela, e eu já venho ouvindo isso há uns três anos... Só que... Talvez ela também saiba que jogar todo o seu patrimônio fora seja um preço alto demais.

Soltei o ar. — Lis... Cinco advogados já analisaram meu contrato, ele é tão bem amarrado, que me perguntaram se ele foi escrito com sangue. Eu nunca deveria ter assinado, mas meus pais praticamente deliraram com os valores... Eu vendi minha alma, e o diabo está levando a Ross como pagamento, está levando meu coração. E vamos ser sinceros... Nem mesmo o casamento vai me dar garantias...

Ela afagou meu rosto com pesar — Eu te amo tanto, gatinho... Se eu pudesse, entraria naquele escritório e rasgaria seu contato na hora. E a ironia disso, é que se eu estivesse trabalhando onde meu pai gostaria, eu poderia fazer isso.

Ri ironicamente. — Somos duas pessoas lutando pelo o que acreditamos, Lis. Talvez por caminhos tortos, mas acredito na intenção boa.

Ela suspirou. — Por falar em intenção boa... Eu tenho a última reunião para falar dos convites com Ross amanhã. Vou conversar com ela. Talvez ela se sinta melhor, se eu mesma explicar.

— Eu espero que sim. Estou enchendo ela de lembranças, queria saber se está funcionando...

****

Antes da noite chegar, preparei mais dois pacotes um para ser entregue as 10 da noite e outro pela manhã. Marco estava encarregado das entregas. E já havia feito uma na hora do almoço no escritório dela, um pastel de frango com queijo que dividíamos toda sexta-feira depois da escola com uma coca cola de vidro. Não recebi nenhuma mensagem sobre aquilo. Mas esperava receber com o pacote da noite.

Era um DVD do filme favorito dela, o primeiro que fomos ver no cinema, ela ficou tão doida depois de assistir que o material escolar dela do ano seguinte, foi todo sobre o filme. O que colaborou com o falatório sobre ela na escola. A mensagem que ela havia tirado do filme era a de que ela podia fazer o que quisesse, e ninguém ditaria regra alguma para ela. Mas os caras da escola pegaram a ideia por ela se vestir como um garoto. E isso me fez praticar um outro esporte. Entre as aulas que eu dormia, o futebol que me consumia, e o tempo que passava com ela, eu ameaçava, e às vezes arrebentava um otário falando merda sobre ela. Acho que ela nunca soube, mas sempre foi um reflexo, ela agia, eu a seguia, como um guarda-costas espião.

E agora eu tinha pouco tempo para provar que eu sempre a amei de verdade, que ainda a amo.

***

Era perto da meia noite quando meu celular começou a tocar, atendi vendo a foto dela, tinha dormido no sofá outra vez e agradeci por isso, ou acordaria Lis.

— Ross? — falei sonolento.

— Eu tenho uma pergunta para você. — disse séria, mas senti o leve embargo de sua voz.

Me ajeitei no sofá — Estou aqui para isso, Rosalinda.

— Você acha que o Capitão Shang amava a Mulan, mesmo enquanto ela era o Ping?

Cerrei os olhos. Tinha cara de armadilha.

— Hã... Acho que ele sentiu algo por ela durante o treinamento...

— Então acha que ele é BI? Ou ele sacou tudo desde o começo?

— Acho que um homem saca essas coisas... Mas por que está perguntando...

Ah merda! Me dei conta de onde ela queria chegar... Que inferno!

— Boa noite, Théo.

E desligou na minha cara. Fechei os olhos sem acreditar. Eu havia literalmente produzido provas contra mim. Eu sou um imbecil.
Foi mesmo uma armadilha.

Tentei ligar outra vez, mas ela havia desligado o celular. Nem precisava dizer que aquilo me deixou terrivelmente transtornado. Não dormi a noite toda, e me senti pior ainda quando Lis desceu as escadas me achando no sofá, jogado, e me mostrou a mesnagem que havia recebido logo cedo.

"Bom dia, por motivos de força maior, no dia de hoje, a senhorita Brenner cancelou todos os seus compromissos, aguardamos seu contato para um reagendamento. Obrigada pela compreensão. Att Thereza"

— O que significa isso? — perguntei confuso.

— Significa que ela não quer falar comigo, ou... Se for verdade,  ela deve estar indisposta ou algo assim.

— Indisposta... Tipo doente? — perguntei com uma cara de burro que fez Lis rir.

— É, gatinho, tipo isso... Você fez algo para ela?

Baixei os olhos — Tivemos uma conversa rápida sobre Mulan. — dei de ombros.

Lis cerrou os olhos para mim — Mulan... O desenho da Disney? — ela nem sequer me deixou responder, revirou os olhos indo para a máquina de café. — Ah deixa para lá, vocês dois... Ninguém mais nesse mundo é capaz de entender as maluquices de vocês.

E era mesmo... Exatamente isso.

— Marco já foi? — perguntei me levantado.

— Acho que não.

— Ótimo, segura ele, e diz que vou junto.

Saí tentando andar rápido até o elevador, precisava de um banho, de roupas confortáveis e uma pitada de óleo de peroba para a cara de pau que eu teria que lustrar para ir até lá.

90 Dias para "Não" Casar Onde histórias criam vida. Descubra agora