Capítulo vinte e dois

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Chichi escutou o lobisomem atentamente, em silêncio, não o interrompeu nenhuma vez sequer, por mais que quisesse fazê-lo.

As palavras que Kakarotto lançava eram inacreditáveis, e ao mesmo tempo, totalmente possíveis. Tudo por que fazia todo sentido diante da atual situação de Chichi e das lembranças que perturbava sua mente.

Enquanto escutava em silêncio a explicação de Kakarotto, o cérebro de Chichi absorvia sua nova condição. Seria hilário se não fosse trágico, concluiu com pesar. Em outra época, não muito longe daquela, se escutasse uma história como aquela, da qual estava vivendo, riria na cara da pessoa que falasse tais asneiras.

Chichi nunca acreditou nas histórias da Transilvânia. Vampiros e lobisomens eram histórias para assustar crianças, era o que dizia a si mesma. Seu pai, tratando-se de um homem cheio de crendices, encheu sua cabeça de histórias absurdas desde muito cedo, mas Chichi nunca deixou aquilo consumi-la ao ponto de acreditar em qualquer coisa que lhe falasse.

Ela gostava de considerar-se mais evoluída do que o povo da Transilvânia. Gostava de ver o mundo com realidade, com lógica. Não através de ilusões fantasiosas como outros. Mas agora, Chichi sentia o tapa na cara do destino. Era como se estivesse sendo punida por não ter acreditado nas histórias no passado.

O mundo dava voltas, e por ironia, ela acabou tornando-se aquilo que ela considerava impossível, aquilo que ela considerava absurdo e ilógico. Um dos monstros que o povo falava.

A morta-viva estava tão inerte por conta de seus pensamentos que nem percebera que Kakarotto havia parado de falar.

Ele a olhava intrigado, até um pouco apreensivo. Parecia com medo da sua reação, e ao mesmo tempo, aguardava na expectativa.

Chichi não ouvira a última parte do que ele falara por conta de seus devaneios, o que era uma pena, pois foi justamente naquele momento que Kakarotto declarou a culpa que o assolara quando a viu morta em seus braços e como sua vida perdera o sentido sem ela.

Talvez por isso ele necessitava tanto de uma reação dela, de alguma palavra. Mas Chichi permanecia ali, parada e neutra em suas feições.

- Por favor, diga alguma coisa - implorou ele não suportando mais aquele silêncio.

- Aonde está o meu pai? - Indagou ela num sussurro.

Kakarotto não havia falado sobre isso com ela, contara tudo nos mínimos detalhes para não haver dúvidas, mas sobre aquele assunto, achou que seria melhor fala-lo em outra ocasião. Quando tudo entre eles estivesse resolvido, talvez.

- Meu pai, Kakarotto - insistiu ela quando não obteve resposta. - Aonde ele está?

- Ele... - Kakarotto limpou a garganta visivelmente desconfortável. - Ele se suicidou.

Chichi piscou algumas vezes um tanto desnorteada. Sentiu uma pontada forte em seu coração. As lágrimas finalmente desceram, deixando agora toda a dor vir junto delas.

- Meu Deus - murmurou ela colocando as mãos na cabeça enquanto as lágrimas molhavam sua face. - Meu pai está morto, aquela gente toda está morta, e eu... me tornei um monstro.

Kakarotto, vendo a dor nos olhos de Chichi, tentou tocar seu braço para puxa-la para um abraço solidário. Entretanto, ela repeliu seu toque como se ele fosse leproso.

- Não me toque! - Rosnou ela. - Isso tudo é culpa sua.

- Como? - Kakarotto encolheu o braço um tanto arredio pelo ódio de Chichi direcionado à ele.

- Você me transformou nisso - gritou ela com repudia. - Me transformou em um monstro. Eu matei aquela gente toda, Kakarotto, por Deus, eu matei.

- Não! Chichi, por favor, não.

- Não o quê, Kakarotto? - ela mostrava-se totalmente descontrolada. - Você é doente! Em algum momento pensou em mim, em como eu me sentiria? Não se deve quebrar as leis de Deus, minha alma está condenada agora, e é tudo culpa sua.

- Chichi! - Kakarotto sentia o coração pesar. - Você precisa me entender, eu não sabia, juro que não sabia que você despertaria daquela forma. Sem lembranças de sua vida, com sede de matança...

- E se soubesse? - Indagou ela o cortando. - Seria diferente? Teria me deixado morta, o que seria o correto, ou apenas pensaria de maneira egoísta nas suas vontades, no seu querer.

Kakarotto abaixou os olhos deixando a pergunta de Chichi pairar no ar. Ele não poderia responder aquela pergunta, não de uma maneira que agradece Chichi. Ele a teria trazido de qualquer forma, não importava as consequências, não importava as vítimas. Ele apenas a queria, e faria de tudo para tê-la novamente.

- Não posso viver sem você.

Achou que seria a melhor resposta que poderia dar à ela, mas assim que ergueu o olhar, percebeu que deveria ter ficado quieto.

- Acha que isso me amolecerá, Kakarotto? - Chichi limpou as bochechas com as costas da mão. - Acredita mesmo que essas palavras mudarão a raiva e a mágoa que estou sentindo?

- Não me odeie, Chichi - implorou ele pegando nas mãos dela e as puxando. - Tudo que fiz foi por amor. Não consegue entender que não poderia viver sem você? Céus, você se colocou na frente daquela bala por mim, eu não poderia aceitar sua morte. Não poderia!

- Isso não é amor - murmurou ela com a voz embargada. - Isso é culpa. Culpa por não ter me dito a verdade desde o começo, de não ter me contado o que era. Culpa de ter aparecido naquela noite, mesmo sendo quando assumia sua maldição, selando assim meu destino.

Ela puxou suas mãos do toque dele. Ainda podia sentir as lágrimas descendo em sua face, podia sentir a cada segundo seu coração - coração aliás que ela nem sabia de quem era - despedaçando de dor.

Kakarotto sentiu as palavras de Chichi como um soco na cara, cada sílaba doía em sua alma como se ferro em brasa passasse pela sua pele.

- É verdade - declarou ele por fim. - A culpa me corroeu, me fez enlouquecer ao ponto de despertar um vampiro e ligar a máquina de um louco. Mas ainda assim... Ainda assim, Chichi, tudo o que eu fiz, é porque eu te amo e não posso viver sem você. Eu não poderia perdê-la.

Chichi sentiu a garganta fechar-se diante da dor que sentiu. Ela ainda o amava, o amava com todas as forças que possuía. Sentia que ainda podia dar a vida por ele, como fizera quando colocou-se na mira da arma de seu pai. Mas amor não mudaria as coisas. O amor não a salvaria das lembranças doloridas. As imagens daquelas pessoas sendo mortas por ela a perturbaria por toda a eternidade, e fora ele, Kakarotto, o homem que ela amava, que a condenou a culpa eterna.

- No fim não importa seus motivos - disse ela por fim. - Para morte ou para o rancor, você me perdeu de qualquer maneira.

Virando-se para sair de perto dele e seguir seu caminho, Chichi colocou-se a andar. Partiria para longe dele. Não queria mais conversar, não queria mais vê-lo. Estava magoada, ferida, confusa... Ironicamente, preferia estar nos braços da morte do que naquela infeliz situação de dor.

- Não! - Exaltou Kakarotto segurando o braço de Chichi, impedindo-a assim de seguir seu rumo. - Não me deixe. Eu a trouxe de volta, nada poderá nos separa agora.

- Eu posso! - Declarou ela puxando o braço com força.

- Não faça isso, Chichi. - Kakarotto a pegou pelos ombros e virou-a de frente para ele. - Eu te amo.

Chichi soluçou pelo choro que a consumiu. Era dolorido demais, sofrível demais.

Kakarotto viu ela, de certa forma, amolecendo, e a abraçou. Chichi não retribuiu o abraço, apenas por um segundo, ancorou a cabeça no peito dele, permitindo-se um minuto de fraqueza.

- Me solta, Kakarotto - implorou ela vendo que não podia deixar aquilo continuar.

- Não vou soltar.

- Por favor, não me faça sofrer mais.

A Caçadora de MonstrosOnde histórias criam vida. Descubra agora