CAPÍTULO XVII - PENSANDO NA MORTE DA BEZERRA

87 14 144
                                    


A terrível orquestra de tiros e ganidos de zumbis ― agora somente mortos comuns. ― foi substituída com exímia velocidade por um silêncio sepulcral. Palavra mais do que perfeita para definir o cenário todo. Quem visse de fora poderia facilmente supor que uma guerra ocorrera bem ali tantas eram as carcaças que cobriam o chão. Não que o chão original estivesse visível sob as tripas e o sangue caliginoso daquelas criaturas que, apesar do meu desejo de acreditar serem monstros irracionais, ainda carregavam boa parte da humanidade consigo.

Vestiam roupas como as nossas, tinham faces similares ainda que tomadas pela mutação e, se procurasse em seus bolsos, encontraria nomes, fotos, histórias. Tudo isso simplesmente desaparecera apenas por causa de uma doença bizarra? Eu tinha o direito de execrá-los da condição de meus semelhantes sendo que nossa única diferença eram diversos acasos convenientes responsáveis por colocar-me em cima daquele ônibus em vez do chão da clareira? Não. Não tinha. Eu era hipócrita. Fraco. Pequeno. E o apáscoalipse estava expondo cada vez mais essas partes de mim. Não sei se haverá terapia no mundo capaz de "curar-me" depois de tudo, se é que realmente haveria um mundo depois.

De volta ao teto do ônibus, os olhares de todos jaziam repousados sobre a Capitã. A mulher permanecia ajoelhada apoiando-se nas armas que serviam como muletas. Sua cabeça pendeu para frente tornando impossível visualizar o rosto. Certamente, haviam questões povoando a mente de cada um ali ― a minha não era exceção. ―, contudo ninguém se dispôs a falar ou fazer qualquer coisa até o corpo da Capitã vacilar como se ela fosse cair de vez. Nessa hora, o soldado Toledo prontamente avançou segurando-a nos braços. O homem analisou sua companheira por uns segundos, então, ajeitou o corpo inconsciente de Suelen junto ao seu e ergueu-a nos braços. As duas armas tombaram produzindo um estalido metálico que fez o restante das pessoas balançarem a cabeça como se despertassem de um sonho. Toledo lançou um olhar para Arantes. Em seguida, nos deu as costas e caminhou de volta para dentro do veículo.

Demétrio, Érico e eu encaramos o soldado de olhos azuis. O homem parecia abalado, mas respirou fundo e tomou a palavra:

― Atenção, crianças! ― disse ele. ― Normalmente, eu não devia contar pra vocês sobre a situação nem pedir o que vou pedir, mas são os mais capazes aqui depois de nós, soldados. Precisamos sair desse lugar o mais rápido possível. O som dos tiros pode atrair outros pra cá e dessa vez não teremos a Capitã para nos salvar. ― ele voltou-se para o mar de mortos mais especificamente o montinho próximo da estrada. ― Antes de sairmos, vamos ter que tirar os corpos da frente. Eu sei que é pedir muito. Mas preciso que façam isso ― troquei olhares com os outros rapazes. Ambos sentiam medo como eu, porém, não do tipo que os impediria de ajudar.

― A gente faz ― respondi, seguro, por todos.

Arantes pareceu surpreso. Ele olhou para Demétrio e Érico que assentiram.

― Muito bem, então ― Arantes recolheu as duas armas do chão. ― Vou guardar o equipamento e preparar o ônibus. Depois vou ajudar vocês. Sejam rápidos, mas pelo amor de Deus tenham cuidado. ― a mensagem era para todos, entretanto o olhar do soldado pairava sobre Érico. Justo, pensei, são família. Mas o rapaz mantinha ressalvas quanto a isso, ele corou dando alguns passos para trás.

― Vai ser mais rápido se a gente pular daqui ― sugeriu o loiro-padrão já dando o exemplo.

Corremos para a beira. Érico havia acabado de atingir o chão. O rapaz olhou em nossa direção com um sorriso convidativo. Com outro sorriso, esse de entusiasmo, lancei meu corpo para frente. A queda foi rápida, mas divertida. Quando terminou, eu estava sorrindo de alegria por uma pequena coisa e, no inferno, isso era muito. Érico se juntou a mim, passou o braço por minha nuca, mas dessa vez não o afastei, ao invés disso ajudei-o chamar Demétrio para junto de nós.

APÁSCOALIPSEOnde histórias criam vida. Descubra agora