CAPÍTULO XIV: HORDA - PARTE I

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O ônibus seguia pela estrada já há um bom tempo. As janelas, que antes jaziam obscurecidas, pouco a pouco atenuaram-se permitindo que os primeiros raios de luz da manhã se esgueirassem timidamente através das árvores rodeando a pista. Porém, não era um brilho familiar nem reconfortante que talvez carregasse consigo uma sensação de que mesmo com tudo que aconteceu, a terra girava como sempre e ainda bela. Em vez disso, tratava-se de algo falso, artificial. Um subversivo fulgor escarlate que cobria o mundo como um manto infernal. Perante este manto, o interior do ônibus adquiriu um tom vermelho-escuro sombrio e desanimador.

Segurei os dois garotos aninhados contra meu corpo com um pouco mais de força enquanto cantarolava alguma música do fundo da minha mente. Em algum momento, os meninos acabaram cochilando em meu peito e, agora, eu sentia a respiração deles, bem como seus coraçõezinhos batendo junto ao meu. Um delicado cheiro de shampoo emanava de suas cabeças. Cada um vestia um uniforme acinzentado igual ao de Angélica. Quando eles adormeceram, temi que acabassem percebendo o binder, contudo deixei isso para lá por dois motivos. Primeiro: eram crianças. Segundo: me dei conta que não ligava mais tanto para manter esse "segredo". Depois de lutar com zumbis, fugir de homens-coelhos gigantes carnívoros e levando em conta que minha verdadeira preocupação era sobreviver e achar meus pais, o fato de eu não ser um homem cis era o que menos importava, também não cabia fazer todo mundo olhar para mim e dar a notícia, então acabei decidindo apenas ficar de boa com isso.

Quanto as outras pessoas no ônibus, além de mim, dos meninos, do grupo que formei até chegar ali e dos soldados, havia apenas um homem de uns quarenta anos que usava óculos, camisa branca lisa e com o cabelo preto bagunçado mais um senhor de idade careca, provavelmente com seus sessenta e poucos anos, este último vestia um paletó e calça moletom verde. Os dois permaneciam em silêncio desde que entrei, mas não sabia dizer se falaram algo antes disso, porque, na verdade, ninguém dizia nada há horas. Não depois da Capitã Suelen chamar os outros dois guardas pelo rádio afirmando que perdeu contato com a "central". Achei um tanto descuidado da parte dela falar isso para todos ouvirem, contudo quem era eu para dar pitaco?

Senti alguém se aproximando. Reconheci o perfume Malbec pouco antes de ver Érico sentando-se à minha frente. O loiro-padrão permaneceu ali por uns bons minutos olhando ora para a janela ora para o resto do ônibus e ora para mim. Evidentemente ele queria dizer algo, contudo eu não estava muito a fim de iniciar uma conversa. Mas começaria, apenas porque me irritava ver o garoto com aquele sorriso estranho de quem não consegue articular uma frase nem desistir de fazê-lo.

― O que foi? ― perguntei baixinho para não acordar os meninos.

― Nada ― respondeu ele prontamente no mesmo tom.

― Então o que tu quer? ― ele franziu o cenho por um segundo e eu também. Era impressão minha ou eu realmente falei igual Demétrio?

― Eu... ― ele hesitou olhando para cada centímetro do espaço ao nosso redor antes de finalmente concluir sua frase: ―... queria agradecer... a você... caso não tenha ficado claro!

― Agradecer pelo quê? ― indaguei.

― Bem ― ele deu um sorriso sem graça. ― Você meio que me salvou naquela hora que o zumbi veio pra cima de mim e todo mundo depois, na verdade, eu acho. Quer dizer, foi você que fez a gente correr pro ônibus e bem antes também foi você que fez a gente se mexer quando aquele bichão caiu no refeitório. Ah, e não dá para esquecer do que fez por esses dois aí também. Você é incrível, sério mesmo. Muito obrigado.

Érico afagou os cabelos de um dos meninos. Segui sua mão com o olhar e depois voltei a encará-lo sem saber o que responder-lhe. Quando movimentei-o, junto a Demétrio, para fugir do coelhão, fiz com o único intuito de sobreviver ― coisa que julguei ser mais fácil com os dois ao meu lado. ― Quando matei o zumbi que atacava o loiro-padrão não sei dizer se foi por ele. Aconteceu tudo tão rápido. Talvez tenha sido no início, não era um sentimento confortável de admitir, mas havia adorado detonar aquele monstro. De alguma forma, descontar tudo nele me livrou de certas coisas que me incomodavam e depois passei a me sentir renovado, capaz de enfrentar qualquer coisa. Por isso, mesmo morrendo de medo, eu corri para o ônibus e era verdade que chamei por todos, mas na hora "H" não fazia diferença se estavam comigo ou não.

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