CAPÍTULO VII: ORELHUDA

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Antes: Felipe joga futebol com alguns rapazes e um deles chama sua atenção, porém, todo o encanto some após presenciá-lo dizendo coisas homofóbicas.

Agora:

Acordei com um aperto no peito como se algo muito ruim tivesse acontecido, só não sabia o quê. Se foi um pesadelo, não havia nenhuma lembrança que pudesse comprovar. Me sentei na cama e direcionei meus pés até o chão frio. Peguei meu celular sobre a cômoda. Franzi a testa quando visualizei a tela, pois percebi que estava off-line. Mexi nas configurações do Wi-Fi, reiniciei, mudei para 3G, mas continuei na mesma. Bufei, irritado, e levantei.

Uma série de ruídos vinha da rua como se houvesse uma grande festança acontecendo, imaginei que, sendo Sexta-feira Santa, devia ser alguma passeata religiosa ou coisa assim. Fazia muito sentido, na verdade, depois de tanto tempo em isolamento era normal querer um pouco de aglomeração. Mas logo, logo todo mundo vai lembrar que isso é uma coisa extremamente chata na realidade. De qualquer forma, não dei muita bola ― minha família não era muito ligada em religião já que meu pai é um cientista, ainda assim comemoramos a Páscoa no melhor estilo hipócrita de ser. ― Vesti rapidamente o meu binder e saí do quarto ainda descalço.

Em contrapartida a rua, minha casa estava bem quieta. O que era estranho, porque desde que me lembro, meus pais sempre foram gente madrugadora do tipo que acorda cedo por prazer. Eles sempre começavam os fins de semana e feriados conversando enquanto comiam ou assistindo TV abraçados, em outras palavras, de manhã a casa nunca ficava tão silenciosa daquele jeito. Estava indo para o banheiro quando um estrondo veio da cozinha.

― Mãe? ― chamei indo até lá. A madeira do chão soltava pequenos rangidos conforme eu passava.

Um longo grunhido parecido com um ronronar, só que do maior gato do mundo, ecoou pelo apartamento. Ergui os olhos, aturdido, para a pessoa à minha frente ― e ela com certeza não era minha mãe. ― Aquela criatura, aquela coisa estava de costas para mim. Devia ter uns dois metros. Era corpulenta no nível de um fisiculturista. Uma fina pelagem branca malhada de cinza cobria seu corpo. Suas mãos pareciam humanas, mas com garras bem pontudas quase como se estivessem pregadas ali, seus pés lembravam patas de animal gigantescas, mas o que mais chamava atenção era a cabeça, quase tão grande quanto o tórax com duas orelhas pontudas se erguendo sobre o crânio como se fossem chifres.

Assim que me dei conta do que meus olhos presenciavam, segurei um grito. A coisa fuçava a geladeira freneticamente. Parecia estar frustrada com algo. Esquadrinhei o lugar. Não dava para sair do corredor sem passar pela cozinha, mas algo chamou minha atenção: a gaiola de Orelhuda estava completamente estilhaçada sobre a mesinha onde a coloquei e não havia nenhum sinal da lebre. Desviei o olhar lentamente para o monstro e notei muito a contragosto que ele se parecia com um coelho. Olhei da gaiola para ele de novo, e de novo, e de novo sem querer acreditar na maluquice que tinha pensado, porém sem conseguir pensar em outra coisa além disso.

Com minha cabeça gritando milhares de palavrões, recuei o mais devagar e silenciosamente que consegui de volta para o meu quarto. Cada rangidinho da madeira parecia uma sentença de morte, mas continuei andando. De repente, um estrondo veio de fora e meu coração quase parou. Recuei mais depressa e em meu desespero esbarrei num vaso de planta que aparentemente brotara ali. Me virei a tempo de ver o objeto atingir o chão; o som dele se quebrando ecoou por todo o apartamento.

A criatura imediatamente se voltou para mim. Seu rosto era arredondado, coberto por uma pelagem branca de aparência sinistramente macia, seis olhos vermelhos se estendiam em pares na direção da cabeça ― todos cravados em mim. ―, o focinho era grande e preto e movia-se constantemente. Ela me fitou por um segundo antes de abrir uma bocarra imensa com quatro fileiras de dentes cada um do tamanho da minha mão, exceto pelos dois da frente que eram maiores, e soltar um rosnado que pareceu fazer o prédio inteiro tremer. Engoli outro grito e saí correndo para meu quarto.

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