CAPÍTULO XXXII: FELIPE FERREIRA, A ORIGEM

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ANTES: Flora em sua forma de coelho apelidada de Vermelhona enfrenta a Capitã Suelen. Ambas lutam bem, mas a capitã sai vitoriosa, porém, a fera chama por ajuda de  outros coelhos incluindo ninguém menos que Orelhuda.

AGORA:

Quando eu tinha oito anos, meu pai me chamava de sua pequena lagarta. Minha mãe odiava, claro, eu mais ainda. Ele apenas ria e continuava. Devo ter mostrado a língua mil vezes, em resposta. Algumas noites, antes de dormir, me botava no colo, apontava as estrelas e falava sobre como, um dia, eu deixaria de ser uma lagarta e me tornaria uma borboleta. A mais linda de todo o mundo. Com asas fortes para voar por todo o céu. Depois beijava minha bochecha com força e colocava na cama. Continuei odiando o apelido, mas sempre dormia sentindo-me um pouco menos errado naquelas noites. No dia em que contei a ele sobre quem eu era, mesmo já sendo velho, papai pegou-me no colo, beijou a bochecha e disse que se orgulhava imensamente de ver sua pequena lagarta criando coragem para libertar-se do casulo, de seu próprio jeito.

"E para onde quer que você voe, eu vou estar com você. Eu te amo, meu filho perfeito."

Essa memória veio com toda a força conforme observei a grotesca forma da velha coelha. Seus olhos escarlates movendo-se pelo local, talvez tentando compreender sua situação, andava sobre quatro patas, como se ainda fosse um animal. Seu pelo estava todo manchado de sangue, os fios brancos tomados por um rosado sinistro. As seis orbes demoníacas, de repente, viraram-se para mim. A boca cheia de dentes abriu-se, os mesmos dentes que estraçalharam Melissa bem diante dos meus olhos. Rosnou baixo. A desgraçada lembrava. Infelizmente para ela, eu também.

Apertei o cabo do machado a ponto de ouvir a contração nos nós dos meus dedos. De todas as pessoas ou coisas ruins que encontrei durante o apocalipse, ela era quem eu mais desejava matar. Pelo visto, havia reciprocidade nisso. Entretanto, antes de poder mover um músculo, outro coelhão caiu do céu. Ergueu-se dos escombros ao lado de Orelhuda. Tinha pelagem cinza e presas tão grandes a ponto de rasgar seu rosto. Duas feras marrons aterrissaram juntas, a poeira dificultou minha visão, mas logo compreendi. Eles eram a mesma criatura conectada por certo ponto no meio da coluna. As cabeças mordiam o ar, desconexas. Os olhos moviam-se em várias direções, espuma branca pingava da boca. Aquilo era muito feio, até mesmo para o padrão dos coelhões. Uma fera preta atravessou a parede rolando até os outros. Ele se apoiou nos braços anormalmente grandes. Me lembrou, de longe, um gorila.

As quatro criaturas (quatro e meio, talvez?) agruparam-se sob o buraco no teto. A luz vermelha do céu atrás delas refletia em seus olhos fazendo-os brilhar. A presença dos coelhões era sufocante. Senti que estava encolhendo até me tornar uma formiguinha facilmente esmagável por um garoto qualquer. Um arrepio atravessou meu corpo. Ódio pelo destino cruel misturando-se ao medo e desespero. Sentimentos irritantemente familiares.

Vermelhona latiu uma pergunta fraca. "Cadê os outros?"

Mas não tive tempo de processar aquilo, pois ao contrário das outras vezes, não houve um rugido feroz de aviso. A manada apenas começou a correr em nossa direção. O estrondo das patas pesadas contra o concreto preencheu o ar. Ninguém tinha forças para gritar, muito menos correr. Vi Érico, Demétrio e outros apenas fechando os olhos. Parecia justo, se fosse para partir, ao menos não veriam o momento final. Senti falta do calor familiar dos irmãos em meus braços. Grande seria a justiça poética se partíssemos juntos, depois de eu tê-los salvado. Contentei-me com a visão dos dois ao lado do loiro-padrão. Três pessoas que conheci na pior circunstância possível, mas mesmo assim tornaram-se extremamente importantes para mim.

Já podia ouvir os monstros, mais alto que meus pensamentos. Realmente não havia solução. Ainda assim, não consegui fechar os olho.. Eu não podia. Era contra minha natureza. Encarei meus predadores sem piscar. Se havia alguma hora para despertar o poder oculto em mim, seria esse. Quando esperanças ou a mera determinação humana não serviriam de nada. Em vez de poderes, recebi a Capitã Suelen agarrando o coelho-gorila pelo pescoço e o arremessando de encontro ao Dentução. Ainda no ar, tentou alcançar Orelhuda, porém, a imensa mão retorcida do coelhão preto fechou-se ao seu redor. Suelen foi jogada para cima como uma boneca de pano. Seu corpo atravessou o teto desaparecendo de vista.

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