CAPÍTULO XIX: UMA PASSAGEM PARA O CÉU

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Como um viajante deixando a cacofonia da cidade para trás rumo a calmaria do campo, nosso ônibus afastou-se rapidamente do inferno até que o pesadelo não passasse de um eco surdo preso na memória de todos. Em momento algum, eu ou os irmãos fizemos qualquer menção de nos separarmos. Nosso abraço continuava firme e forte como se, depois que o encerrássemos, tudo que foi dito em seu espaço deixasse de ser verdade. Claro, isso jamais aconteceria, mas por outro lado eu não estava interessado em tomar aquela iniciativa.

Queria os dois o mais perto possível pelo máximo de tempo. Desejava continuar sentindo seus coraçõezinhos batendo devagar contra o meu. Seu cheiro doce afastando a memória do fedor daquilo e suas presenças trazendo uma contínua sensação de paz. De repente, uma lágrima sutil escapou de meus olhos fechados. Abri-os. Tudo que via ainda era um pedaço da janela juntamente de parte dos irmãos, entretanto minha mente vagueou até meus pais. Houveram momentos, muitos, na verdade, que eles assumiram o exato lugar onde me encontrava. Eles não eram muito de falar nesse tipo de situação, em geral punham-se disponíveis para ouvir, depois me enchiam com frases de consolo clichês que sempre arrancavam um sorriso meu ao mesmo tempo que aliviava o peso das emoções. Também era comum deixarem suas ações anunciarem a intenção. Um beijo, carinho na cabeça e um abraço prolongado. Eu podia chorar se assim fosse. Estariam lá para mim.

Dei um sorriso de canto. No fim das contas, fiz exatamente como eles fariam. Exatamente o que queria que fizessem comigo. Não era à toa que fiquei emocionado. Apertei os irmãos um pouco mais e acariciei suas cabeças tal qual meus pais. Os dois estranharam de início, mas não reclamaram, pareceram ficar ainda mais tranquilos com isso e aninharam-se mais confortavelmente em meu peito. Fiquei grato por isso. Não queria que vissem as outras lágrimas indo fazer companhia para a primeira.

 Não queria que vissem as outras lágrimas indo fazer companhia para a primeira

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No tempo que se seguiu, não cruzamos com mais nenhuma esquisitice mórbida. Claro, eu não saberia mesmo se acontecesse porque continuei deitado junto com os irmãos no resto do caminho, uma parte ainda pelo momento legal de antes, mas outra justamente porque eu temia que outro cemitério a céu aberto ou seja lá que droga fosse fosse aquele inferno, aparecesse diante de nós, então garanti que permanecêssemos deitados, seguros, nos braços uns dos outros e da ignorância.

Como o universo me odeia, o fato de estarmos naquela posição provou-se um terrível erro quando o ônibus virou com toda a força jogando-nos de encontro ao chão. Caí de costas e, ainda sem conseguir raciocinar direito devido ao susto, tentei pegar as crianças, mas esqueci do machado em minhas mãos. Tentei rolar para longe. Por reflexo, joguei o objeto fora, só depois de soltar pensei que podia atingir alguém, no entanto a essa altura do campeonato ele já tinha se cravado no teto. O veículo rodou mais uma vez, afastando-os. Ouvi meus companheiros gritando ao fundo, no entanto não consegui identificar quais. Do lado de fora, algo chocou-se com a lataria. Um som gutural ecoou. O ônibus parou por um segundo antes de dar ré esmagando alguma coisa com as rodas. Repetimos o gesto algumas vezes até finalmente pararmos.

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