CAPÍTULO XXIV: A INQUISIÇÃO DAS FLORES

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ANTES

Demétrio tem uma conversa honesta com Felipe. O garoto busca definir sua relação com Érico, mas os dois são interrompidos por Áster. Junto dela, Felipe dirige-se ao porão onde, para sua completa surpresa, a jovem aponta uma arma para ele.

AGORA

Como um inocente retirado de seu confortável lar e jogado bruscamente num abismo de gelo e trevas infinitas, me vi naquele lugar, paralisado, dominado por completo sob o poder de uma arma. O toque gélido esgueirava-se do metal contra meu cérebro obstruindo qualquer lapso de lógica ou pensamento racional ao qual pudesse me agarrar buscando salvação ou qualquer ardil que fosse. Eu só não queria morrer.

De repente, percebi, num ímpeto inquietante, que o mundo ao meu redor perdera suas cores dando lugar a um cinza interminável contaminando toda a existência. Podia senti-lo dentro de mim, serpenteando por meu coração, correndo por meu sangue e emaranhando minha mente. Estava em tudo, desde as paredes delimitando o pouco espaço da sala ao chão levemente mais escuro, as prateleiras já metálicas não mudaram, mas as caixas subindo até o teto tornaram-se prateadas, no canto, a mesa quase apagada servindo de apoio a garota de feições fortes também cinzenta. Ela sorria tranquila, tal qual se olhasse para uma pessoa amada. Atrás dela, vi luzes opacas piscando, assim como duas pequenas janelas que atraíram de imediato minha atenção, pois, através delas, via o familiar emaranhado de nuvens escarlates que compunha o céu do apáscoalipse.

Encarei-as sem parar. A visão me agradou. Foi a primeira vez que não me pareceram ameaçadoras ou carregando algum mal presságio. Bem, talvez porque diante do perigo real, presságios tornem-se bobos. Uma gota de suor escorreu pelas minhas costas. Fechei os olhos. A respiração ofegante. À minha volta chamas azuis congelantes, devorando tudo que encontrava, um inferno gelificado. Busquei em algum lugar, o calor. O fogo que queimava entre mim e todos aqueles por quem eu lutava. Pelos que sempre foram parte da jornada, pelos que tornaram-se no caminho. Cacei-os dentro de mim. Suas forças para emprestar, para ter coragem de abrir meus olhos ainda sendo eu, sem deixar-me dominar pelo demônio do medo aconchegando-se e crescendo mais e mais, a cada segundo, sobre meus ombros.

Quando reabri os olhos, nem um segundo havia se passado, porém eu deixara de ser o mesmo de antes. Podia ver cores novamente. O céu, antes tão claro, pareceu distante e a menina à frente ainda mais tranquila. Contive um sorriso. Tinha tomado uma decisão estúpida.

― N-não podem atirar em mim ― balbuciei observando a reação de Angélica. A garota pareceu impressionada, porém não surpresa. ― Vo-vocês não podem... os outros... vão...

― Vão o quê? ― sussurrou Áster atrás de mim. ― Nos matar também? Nos condenar ou então nos largar sozinhas? Acha que íamos meter um louco desses sem considerar as consequências?

BINGO.

― O-o que... quer dizer?

De repente, Angélica soltou um ganido alto. Com as mãos cobrindo o rosto, pulou para o chão de joelhos chorando alto.

― O Felipe... o Felipe ― disse entre soluços. ― Ele... ele se transformou do nada. Virou... um zumbi. Tentou pegar... pegar a gente, tentou me matar... ele queria me devorar... e-eu nem pensei... tinha uma arma e atirei... era ele ou eu... eu nem pensei...

Tão rápido quanto surgiu, a postura desolada desapareceu. Angélica encarou-me de baixo, seus olhos estavam vermelhos e molhados de lágrimas.

― E você já vai estar morto demais para desmentir ― ela completou com um meio sorriso. Engoli em seco. Mesmo sabendo o que ocorrera, vendo se desenrolar à minha frente, fiquei com pena dela. Foi inevitável. Suas palavras carregavam tanto desespero, que não dava para diferenciar se era falso ou não. Senti a calma diminuir consideravelmente dentro de mim.

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