CAPÍTULO VIII - SOBREVIVER

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Antes: Felipe acorda sozinho em casa com um monstro semelhante a um coelho. O rapaz tenta fugir desesperadamente.

Agora:

Passar do beco para a rua foi como entrar em outro universo. Era uma manhã ensolarada, bonita até, os sons da cidade pareciam tão calmos como sempre a despeito do que ouvi quando acordei. O céu estava bem azul, sem nuvens. Porém, bastou desviar um pouquinho o olhar para me lembrar de todo o horror. A alguns metros estava o carro que Orelhuda esmagou. O veículo completamente destruído jazia coberto de sangue, ainda que desse para distinguir a coloração amarela de sua lataria. Balancei a cabeça a fim de pôr as ideias no lugar. Não podia ficar ali parado. Logo o coelhão 2.0 venceria a porta e eu não estava no clima para servir de petisco de monstro.

Não havia uma viva alma por perto ― o que não era nenhuma surpresa. ―, então comecei a caminhar, apressado, mesmo sem saber bem para onde ir. Não demorou para que eu notasse que foi um erro ter parado mesmo que por poucos segundos. Minha adrenalina deve ter baixado e, por consequência, algumas dores apareceram. Nada demais, só uns machucadinhos no pé, na perna, na barriga e na cara além de um cansaço absurdo. A cada passo eu tinha mais certeza de que não seria capaz de dar o próximo, contudo mantive o pensamento o mais positivo que deu.

Avancei menos de um metro quando senti um carro vindo por trás. Desviei o olhar e vi um borrão preto com uma plaquinha em cima onde distingui a palavra "TAXI". Forcei meu corpo a girar enquanto, com os braços, tentava fazer algum tipo de sinal para que ele parasse. Era um belo de um tiro no escuro, considerando que eu não estava exatamente parecendo um passageiro em potencial. Ainda usava minha calça de Pokémon, uma camisa velha do meu pai com o dobro do meu tamanho, que agora jazia toda manchada de vômito, e continuava sem sapatos. Sem mencionar que meu cabelo de manhã não é coisa desse mundo. Mesmo com tudo isso depondo contra mim, o motorista parou ao meu lado.

Antes que ele tivesse tempo para reavaliar a situação, entrei no carro me sentando no banco de trás numa tentativa de diminuir a visibilidade de meu estado deplorável.

― Pra onde, guri? ― perguntou ele me olhando pelo retrovisor.

Abri a boca para responder, mas congelei. Pegar o táxi com certeza era uma boa ideia, tipo, me afastar do lugar perigoso e tal, contudo eu não tinha muita noção de para onde ir. A delegacia? Não, não depois de ligar pra lá e ser ignorado. O hospital? Com certeza eu precisava ir em um, talvez tivesse telefone por lá e eles pudessem dar um jeito de achar meus pais. Pigarreei para criar minha voz masculina e falei como se não houvesse uma sombra de dúvida:

― Pro hospital, por favor!

― Tu tem dinheiro? ― indagou ele.

Merda, praguejei mentalmente. Tinha esquecido dessa parte. Um plano não muito ético veio à minha mente.

― Meus pais são médicos ― menti. ― Trabalham num hospital pertinho daqui.

Ele me fitou por um segundo através do espelho, seus olhos eram muito azuis. Depois, bufou e deu partida no carro. Relaxei meus ombros e respirei aliviado. Meu plano era, assim que parássemos no hospital, usar meus ferimentos, cortes e arranhões para ser levado a emergência e, assim, me livrar da conta ― até meus pais chegarem, óbvio. ― Claro que eu estava pressupondo que eles não saíram para comprar pão e voltariam para casa em breve, porém havia uma vozinha bem lá no fundo sussurrando que minha decisão era a mais certa.

O táxi começou a tomar distância do meu prédio. Foi então que cometi o erro típico de quem está vivendo uma situação de filme de terror: eu olhei para trás. Como se fosse mágica o coelhão 2.0 havia surgido do lado de fora do prédio. Ele era diferente de Orelhuda, maior, mais encorpado. Jazia debruçado sobre alguma coisa, senti a ânsia voltando assim que me dei conta de que era uma menina.  O coelhão estava com a cara atochada no peito dela. O corpo se debatia já sem vida, com os solavancos violentos da mandíbula monstruosa. A ânsia transformou-se em gelo dentro de mim no instante em que um lapso de familiaridade passou por mim ao encarar o cadáver. Aquela blusa azul. Aquele vestido branco florido. Aqueles cabelos vermelhos. Eu CONHECIA aquela pessoa. Ela sorriu comigo. Foi legal, gentil. Não podia ser. Me recusei a acreditar. Recusei com toda a força. No entanto, isso não mudava o fato da pessoa sendo devorada a poucos metros  de mim ser Melissa.

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