39. ONCE IN A LIFETIME

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A água escorria pela madeira velha e encharcava o tapete. O copo teria ido ao chão se tivesse caído alguns centímetros mais perto da borda. Ainda assim, a água caiu no piso e escorreu pelo pequeno espaço entre o criado-mudo e a porta fechada. Então, eu senti meus pés molhados quando andei no corredor. É só água, pensei. Nada demais.

Em algum momento da noite turbulenta, seu braço tocou o copo cheio e o virou. Se não fosse pela água, nunca teria aberto a porta. Por mais estupidamente banal que fosse, esse foi o único motivo que me fez engolir o orgulho e encarar a realidade. Sem gritos, escândalos ou súplicas. Água, só isso. Só água.

Segui os rastros úmidos até a porta, girei a maçaneta e vi como tudo parecia exatamente igual. O livro ainda estava na escrivaninha, as almofadas brancas ainda estavam no mesmo lugar que as roupas dobradas em cima da cadeira. Exceto o copo. Era o único erro, e só alguns segundos depois percebi que era um aviso. A minha mãe que dormia serenamente na cama não estava realmente ali, tinha ido embora em algum momento da noite. Morreu sozinha, esperando alguém aparecer, esperando qualquer coisa. No final, a vida era tão banal quanto o copo vazio. É só água, é só vida, é só isso. Tudo tem fim.

Eu gritei e chorei tanto que não conseguia mais entender. Abraça-la não era o suficiente, gritar com a atendente da emergência não era o bastante. E o grande problema de tudo nem era minha mãe ter morrido, mas não poder voltar no tempo e tê-la amado de verdade.

Isso deixou um amontoado de coisas. Palavras duras que disse e me arrependi, e palavras que nunca consegui dizer. Coisas que fiz, momentos em que a abandonei, vezes em que brigamos e eu disse coisas tão horríveis que nunca consegui pedir perdão. Esse amontoado ficaria pra sempre dentro de mim, queimando de dentro pra fora, me fazendo perceber que perder alguém não era tão doloroso quanto não poder recuperar o tempo perdido com ela.

Eu me sentia renegado, sujo, abandonado, e concebido da forma mais nojenta e dolorosa possível. Eu queria desesperadamente que ela me amasse, mas o ódio por mim mesmo me impediu de ver que sempre houve amor, e que a cicatriz em seu coração nunca teve haver comigo. Quando nasci, ela era minha mãe e eu era seu filho. Éramos só nós dois, sempre foi, e eu demorei tempo demais pra perceber que mesmo nas circunstâncias em que nasci, eu escolheria mil vezes ela como mãe.

Não houve tempo de dizer isso, só houve tempo de segura-la nos braços e chorar tanto como se minha dor pudesse me deixar viajar no tempo, o meu maior inimigo além da morte. Sem ele não pude voltar atrás e nem pular pro futuro, e com o passar dos anos ele tornou a memória ainda mais vívida e clara.

Aquela noite ainda se repetia na minha cabeça. Todas as vezes que estava em perigo, todas as vezes que sentia como se fosse perder algo tão importante quanto ela, a noite se repetia de novo e de novo. Trazendo a dor à tona cada vez mais forte, e se repetindo incansavelmente como um lembrete eterno de que eu nunca, jamais, poderia perder outra pessoa de novo.

***

06:43
Hospital Universitário de Seoul.

No panorama geral das coisas, tudo é ridiculamente pequeno demais. Em algum lugar bem longe, há algo bem maior acontecendo, mas vendo de ainda mais distante, é tão pequeno quanto qualquer outra coisa no mundo. Não importa a distância ou as circunstâncias, somos simples e insignificantes demais em comparação ao tamanho do universo e o que há além dele. Nada deveria ser um problema, e coisas pequenas não deviam ter impactos grandes. Mas naquela noite, quando Jisung sangrou em meus braços, eu senti que eu era grande demais para o mundo.

Não havia espaço dentro de mim que pudesse guardar o que sentia, e mesmo se colocasse tudo pra fora, o mundo exterior também não ia aguentar. Senti como se não fosse uma dor humanamente possível de sentir, e entendi que quando a alma se parte era mil vezes pior do que quando o coração se quebra.

- 𝙇𝙊𝙑𝙀'𝙎 𝘼𝘿𝘿𝙄𝘾𝙏; (𝑚𝑖𝑛𝑠𝑢𝑛𝑔)Onde histórias criam vida. Descubra agora