— Eu não tinha visto isso ainda — Lucas comentou, enquanto entrávamos na cabine.
Ele estava olhando para a tatuagem de farol atrás da minha orelha esquerda.
— Eu e Rafa fizemos tatuagens iguais ano passado — disse casualmente.
— Legal — comentou. — A amizade de vocês, quero dizer.
O moço nos prendeu e lançou a cabine para frente para o próximo casal entrar.
— Você não consegue fazer amigos, não é? — constatei.
— Como assim? — perguntou desconsertado.
— As amizades que você tem se baseiam em coisas erradas — expliquei pausadamente. — Aqueles caras que você pagava... Eu...
— Bom... — ponderou por alguns momentos. — É isso que eu conheço. Cresci aprendendo que as pessoas só ficam ao seu lado por interesse ou por chantagem. Meus pais sempre me ensinaram assim, não sei como ser diferente, Nana.
— Nana? — estranhei o apelido.
— Não gostou? — levantou uma sobrancelha. — Nunca ouvi o Rafael te chamando por algum apelido, resolvi criar um. Não interessa se é maior que o seu próprio nome.
— Certo... — deixei o assunto para lá, focando em algo mais importante. — Seus pais que te ensinaram isso? Chantagens e subornos?!
— Pode parecer cruel... — Ele deu de ombros. — E é o que eles realmente são. Frios e calculista. Dizem que me tiveram para poder passar os bens da empresa, ao invés de entregar de mão beijada para os acionistas. Uma criança é mais fácil de moldar, aparentemente.
— Lucas... — Eu comecei a falar, mas as palavras ficaram engasgadas.
Eu podia não ter mãe, mas meu pai era um amor de pessoa, e sempre me apoiava nas decisões que eu tinha e estando ao meu lado quando eu quebrava a cara.
Vendo ele falando daquele jeito... Será que sabia o que era amor? Amar e ser amado... Minha mão automaticamente foi de encontro com a dele. Entrelacei meus dedos com os longos dedos dele, tentando passar um pouco de reconforto. Dei um sorriso em sua direção, e coloquei minha cabeça em seu ombro.
— Você não é um monstro — Me limitei a dizer. — Agora você tem uma amiga de verdade.
— Mas... — tentou falar.
— Eu sei que fizemos um trato. Mas eu não me importo. Não vou sair contigo porque você me chantageou e pode me entregar para a polícia. Vou sair contigo porque decidi ser sua amiga. O que você vai fazer com aquelas fotos, depende somente de você.
Ficamos em silêncio por um bom tempo, ainda de mãos dadas. Lá embaixo a cidade tinha uma iluminação charmosa. A roda girava vagarosamente, parando periodicamente.
Quando chegamos no topo, onde podíamos ver o horizonte infinito e as estrelas brilhantes, Lucas sacou o celular e abriu a galeria de fotos.
— Você vai mesmo estragar o momento esfregando as fotos na minha cara?! — disse incrédula começando a soltar sua mão.
— Espera! — Ele apertou minha mão contra a dele, me fazendo ficar na mesma posição.
Assisti ele selecionar cada uma das fotos e depois clicar na lixeira permanente. Ele lançou as provas no abismo do lixo virtual. Depois entrou em um aplicativo que salvava as coisas na "nuvem de dados" e apagou as fotos de lá também. Revirei os olhos pelo fato dele realmente ter feito um backup de segurança.
— Agora é um segredo nosso — Ele sussurrou. — Obrigado por...
— Não se preocupe — cortei sua fala. — Não precisa me agradecer por eu ser uma pessoa tão maravilhosa, sensacional e filantrópica.
Ele riu alto, mas não disse nada. Minha cabeça ainda estava em seu ombro, e senti quando ele escorou sua cabeça na minha.
— Eu não consigo ver o rosto das pessoas — As palavras saíram antes que eu pudesse pará-las.
— Estamos alto, também não estou conseguindo ver o pessoal — Ele comentou, olhando para baixo.
— Não, Lucas... — falei, virando de frente para ele. —Eu realmente não consigo ver. Por isso não te reconheci naquela hora, quando me chamou.
— Você está querendo zoar comigo de novo, não é? — apertou os olhos, desconfiado.
— Tenho uma doença que não me deixa reconhecer o rosto das pessoas — mexi os dedos nervosamente. — Eu consigo entender as expressões faciais, mas meu cérebro não consegue registrar as características físicas. É como uma... Cegueira facial. Eu estou te vendo aqui comigo, mas seu rosto é como se fosse um borrão.
— Então como você me reconhece às vezes? Como reconhece seus amigos? — Ele estava confuso.
— Reconheço a sua voz — suspirei. — Lembra quando eu fiz aquele casal brigar? Perguntei pra alguém sobre você, e confundiram o Lucas. Lembra também quando eu fui na lanchonete, olhei pra você e sentei sozinha? Eu não sabia que era você.
— Mais cedo, quando você recebeu o banho de refrigerante, e me mostrou o dedo do meio, você só viu uma pessoa aleatória... E na boate também — Ele lembrou —, você dançou comigo, mas parecia não me reconhecer. Achei que só estava brincando, mas na verdade você não sabia, não é? Com música alta deve ser difícil entender as vozes...
— Isso mesmo — admiti. — Sabe... Meu pai usa o mesmo relógio há anos, logo depois que adquiri essa doença, mesmo que ele nem funcione mais.
— Por isso você não tem amigos? — Ele me encarou com intensidade — Além do Rafa?
— É... Quando era criança as pessoas me olhavam com pena quando sabiam. E as outras crianças eram más — falei com a voz embargada, relembrando o passado. — Resolvi esconder isso de todo mundo, só Rafa sabia, era o único que sempre ficou do meu lado e tentava me defender das outras crianças. Meu pai me matriculou em outra escola, onde ninguém mais ia descobrir meu segredo. Um ano depois Rafa se mudou para lá também.
Lucas ficou me olhando durante longos minutos sem dizer nada.
— Bom... você tem mais um amigo — declarou. — E temos mais um segredo pra guardar.
Agora tínhamos um novo trato. Dessa vez genuíno e sem chantagens.
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Rostos Borrados
RomanceJá imaginou não conhecer a si mesmo? Rostos borrados, desconhecidos amigos, nenhum traço. Ana é uma garota sem rosto. E todos a sua volta também. Em meio a multidão desfocada, um amor da infância ressurge em sua vida depois de seis anos. Será que el...