Megera seria melhor

44 9 12
                                    

    — Vocês viram que ela simplesmente ignorou ele?! — Uma garota de roupas de ginástica disse, horrorizada.

    — Eu não acreditei quando me contaram! — Outra garota com sapatos brilhantes exclamou.

    — Bom... Eu não sei porque vocês estão tão desacreditadas — Um garoto com pulseiras coloridas bocejou. — Ela sempre rejeitou quem se declarou, não é nenhuma novidade isso. Aquela garota é um Iceberg!

    Limpei os restos de salgadinhos da calça e me levantei.

    — É, a garota é realmente um Iceberg, vocês ainda nem viram o que tem por baixo — comentei, passando em frente ao grupo que estava fofocando.

    Eles ficaram sobressaltados e se calaram. Dei um meio sorriso debochado e me dirigi a sala de aula, enquanto ouvia o sinal anunciando o final do intervalo.

 — Por que você rejeitou o Renato? — Alguém me puxou pela manga da blusa de frio. — Você acha que é melhor do que ele? Sua... Sua nojenta!

    — Eu não sei quem esse garoto é, e muito menos sei quem você é. Se você me puxar assim mais uma vez... — falei em tom ameaçador. — Será a última vez que usará seus dedos para alguma coisa.

    — Você... — Ela engasgou, surpresa. — Você não ousaria tocar em mim! E como assim não sabe quem eu sou?! Estudamos juntas há 3 anos.

    — Eu realmente não me importo, seja lá quem você seja — franzi a testa. — Agora me deixe em paz e vá viver sua vida patética, longe de mim.

    Dei as costas e andei despreocupada para minha sala. Ouvi quando ela deu um gritinho de indignação e andou batendo os pés.

    Durante todo o caminho pelo corredor ouvi sussurros sobre alguém que rejeitou mais uma pessoa. Alguém totalmente sem coração, que nem mesmo se deu o trabalho de ouvir todo o poema que o pobre rapaz tinha escrito. Esse alguém era eu. E o "pobre rapaz" estava citando um poema de João Pessoa falando que era dele mesmo, como se ninguém tivesse visto o poema antes, na cara de pau.

    Os murmurinhos continuaram na sala de aula.

    — Ela sempre foi difícil mesmo — Reconheci a voz. — Não sei porquê vocês ainda tentam dar em cima. A garota vai morrer virgem, é melhor tentarem agarrar alguma mais fácil.

    — Sim, Pedro, é ótimo ver que você valoriza as mulheres a sua volta — debochei. — Vocês são meros meninos que ainda não sabem satisfazer uma mulher, mas ficam se vangloriando de transadas que acabaram em meia bomba.

    — O que você... — tentou dizer.

    — Todo mundo sabe que você não consegue terminar, e fica meio assim — interrompi, levantei o dedo mindinho e abaixei (como um gesto mostrando uma "broxada").

    — Garota eu... — Ele foi interrompido pelo professor que bateu palmas para que todos fizessem silêncio.

    Ouvi um "sua bruxa" como sussurro, mas fingi que não era comigo.

    Passei o restante das aulas entediada, prestando meia atenção no que estava acontecendo no quadrado e outra meia atenção voltada para pensamentos aleatórios.

    "Será que vai chover? Quando chegar em casa preciso ligar para aquele técnico. Meu computador será q tem conserto?... Eu preciso pegar as roupas no varal. Meu pai podia me dar outro. Ou eu poderia trabalhar meio período de novo. Será que...", Meus pensamentos foram interrompidos por uma bolinha de papel batendo na minha mão e parando no meio do caderno.

"Você não cansa de ser escrota? Metida"

    Dei uma gargalhada mental. Escrevi "acho que megera fica melhor", e joguei para trás, sem me dar o trabalho de ver para quem cairia.

    Um dos meus passatempos favoritos era irritar as pessoas que tentavam me ferir. E sabe o melhor jeito de irritar? Concordar com o que elas dizem e ainda acrescentar um insulto melhor.

    O sinal tocou, e finalmente poderia ir para casa e tirar as roupas do varal antes da chuva chegar.

    — Ei, quer carona? — Alguém chegou do meu lado, segurando uma mochila laranja florescente.

    — Você não ia sair com sua mãe hoje? — perguntei.

    — Ela disse que precisava trabalhar, de novo — disse, com tristeza.

    — Quer jantar lá em casa? — convidei, com um sorriso solidário. — Acho que meu pai vai cozinhar hoje, alguma coisa envolvendo bacon.

    — Você disse "bacon"?! — Ele gritou. — Eu vou é agora!

    Ri alto. Uma pena nós não sermos da mesma sala, seria muito mais divertido. Rafael era meu amigo desde que me entendo por gente. Meu pai diz que começamos a nos entender quando tínhamos cinco anos. A mãe e o pai dele sempre estava trabalhando ou viajando, então ele passava boa parte do tempo comigo e com meu pai. O que tornava isso ainda mais fácil era que ele morava no apartamento de cima. Não exatamente uma coincidência... Os pais dele se mudaram para lá porque viram uma chance de deixar o filho sozinho com o vizinho que tinha uma filha da mesma idade, sem precisar contratar uma babá. Um bom negócio para eles. E para mim também; era um dos poucos amigos q eu conseguia ter. O melhor de todos.

    Enquanto Rafa ajudava meu pai a terminar o jantar, fui ao banheiro tomar um banho. Fiquei encarando meu rosto por longos minutos diante do espelho. Como seria reconhecer a si mesmo? Eu realmente tinha olhos dourados? Será que eu poderia dizer que conheço a mim mesma sem conhecer meu próprio rosto?

    — Quem é você, Ana? — sussurrei.

    Uma lágrima rolou pela minha bochecha, e outras a acompanharam. Eu não conhecia a mim mesma; o rosto a minha frente borrado, não pelas lágrimas.

Rostos BorradosOnde histórias criam vida. Descubra agora