Amigos? No plural?

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    Abri os olhos e me arrependi no mesmo instante. O quarto estava escuro, mas isso não impediu que minha cabeça explodisse de dor. Eu não lembrava do que tinha acontecido no dia anterior. Depois das bebidas na bancada, muitas coisas viraram lembranças picadas.

    Lembro de ter competido virar copos com uma menina de cabelos azuis, que acredito ser Nataly, a ingrata que eu ajudei no dia que roubei o dinheiro na escola. Lembro de formarmos uma fila e o objetivo era passar uma carta com a boca para a próxima pessoa. Acredito ter beijado o menino à minha direita, e a menina à minha esquerda deixou a carta cair de propósito.

    Nataly e eu parecíamos ser amigas de infância depois de alguns copos. Ficamos abraçadas e até mesmo cantamos algumas músicas conhecidas.

    Lembro também de ter pulado na piscina e me arrependido na mesma hora. Depois me tiraram de lá e me deixaram encostada em uma cadeira. E então... Eu beijei um cara que passava um tempo considerável na academia...

    — AI MEU DEUS! — gritei, desesperada, e me arrependi na mesma hora quando minha cabeça deu outra explosão de dor.

    Eu tinha beijado Lucas. EU! Eu beijei. Não foi ele quem tomou a iniciativa... Foi eu?!

    Enterrei minha cabeça no travesseiro, lembrando da sensação de beijá-lo... Como nossas bocas se encaixavam bem... Aquele... Gritei no travesseiro para abafar. Não acredito que eu fui tão imbecil a ponto de beber e beijar ele. Nós éramos amigos... O único amigo que me restava... E eu acabei de estragar tudo com um beijo idiota. "Idiota, mas muito bom...". Balancei a cabeça, ficando extremamente tonta.

    Corri para o banheiro do meu quarto e vomitei. Não que eu tinha muita coisa no estômago para vomitar, mas aquilo me fez sentir melhor. Escovei os dentes e enxaguei meu rosto para refrescar.

    "Se eu fingir que nada aconteceu, talvez ele não lembre. Ele podia estar tão bêbado quanto eu, certo?".

    Saí do quarto na esperança de não ter ninguém em casa.

    — Olha quem acordou! — Meu pai me recebeu com um belo suco de laranja.

    — Achei que você ia dormir para sempre — Lucas comentou, sentado à mesa.

    "Lucas!", arregalei os olhos e tentei disfarçar o engasgo com o suco, sem muito sucesso.

    — Vai com calma, querida, já basta o estrago que deve ter feito no seu banheiro — Meu pai riu.

    — O que você está fazendo aqui? — ignorei o comentário dele, olhando para Lucas.

     — Você achou que eu ia te deixar sozinha? — Ele perguntou, incrédulo — Eu te trouxe sã e salva daquela festa, mocinha.

    — Não tenho muita certeza sobre a parte do sã — comentei, esfregando minhas têmporas.

    Meu pai me entregou dois comprimidos e disse que ajudaria com a ressaca.

    — Não ache que você vai matar aula, senhorita — Meu pai me advertiu. — Pode ter se divertido ontem a noite, mas isso não te afastará dos seus deveres. Vá se arrumar.

    — Já não estamos atrasados? -— choraminguei.

    — Não importa. Se saírem daqui rápido só terão perdido uma ou duas aulas — Ele me empurrou para o quarto. — Considere esse seu castigo por ter ficado bêbada.

    Tentei protestar, mas ele estava certo. Eu com certeza merecia alguma punição. E pelo menos, indo pra escola, poderia evitar de conversar com Lucas e descobrir se ele lembrava de alguma coisa.

     — Você virou uma celebridade ontem — Nataly passou o braço pelos meus ombros, sorrindo radiante.

    — Como você consegue ficar assim logo depois de encher a cara? — resmunguei.

    — Ana, minha querida... — disse, sorrindo. — Garotas como eu nunca têm dias ruins.

    — Você precisa mesmo de alguém como eu na sua vida — franzi a testa.

    Andamos pela escola juntas. Eu posso não lembrar de muitas coisas, mas me lembro de Nataly me contando coisas sobre sua vida, e chorar pela morte de seu irmãozinho. Descobri que ela era superficial para esconder as dores da vida, e acabei até gostando da maluca.

    — Fiquei sabendo que você deu uns selinhos ontem — Ela confidenciou.

    — O quê? — perguntei, lembrando do beijo com Lucas.

    — No jogo da carta. — Ela me explicou — Você beijou um garoto, e foi um selinho demorado...

    — Aí, nossa... — passei a mão nos cabelos. — Será que ele se lembra?

    Nataly riu da minha cara desesperada. Mal sabe ela que meu desespero era por ter beijado duas pessoas naquela noite (ou três).

    Encontramos Lucas perto das escadas, comendo seu lanche sozinho. Nataly sentou ao seu lado, tentando pegar um pouco do salgadinho dele, e eu fiquei em pé, mantendo uma certa distância.

    — O que foi? - Ele perguntou, mal humorado — Perdeu alguma coisa na minha cara?

    — Eu... — fiquei sem palavras diante do lado demoníaco dele.

    Então senti uma pressão no corpo e meus pés deixaram o chão. Alguém estava me abraçando. Eu não tinha muitos amigos, e eles estavam ali na minha frente, então fiquei apreensiva.

    — Ana! — O garoto exclamou. — Você mudou tanto, quase não te reconheci!

    Ele me colocou no chão e me deixou respirar. Passei os olhos por ele, já sabendo que seu rosto seria um mistério. Ele era alto (acho que talvez duas cabeças mais alto que eu), mas nada ali parecia familiar. Vendo minha confusão, ele pigarreou.

    — Desculpa, eu devia saber que você não ia me reconhecer mesmo. Nós estudamos juntos quando crianças. Sou o André, lembra?

    — Eu não tenho amigos daquela época — falei rispidamente. — Me deixe em paz.

    — Como assim? — Ele sorria. — Claro que tinha! Eu andava junto com você e o Rafa algumas vezes. Não vivíamos grudados, mas nos divertimos juntos.

    — Não sei se você está confundindo a Ana, ou se você está zoando com a minha cara — falei colocando a mão na frente, para ele não me abraçar novamente —, mas eu não te conheço.

    — Mas... — Ele foi interrompido por um empurrão.

    — Você ouviu ela! — Lucas falou, irritado. — Vai embora daqui e deixa a gente em paz.

    — Ei, calma aí — O garoto levantou as mãos em sinal de paz —, achei que ela ia gostar de saber que tem um amigo aqui.

    — Você não é amigo dela — Lucas o olhava com ódio, pronto para socar o rosto dele.

    — Tudo bem... Tudo bem... — Ele se virou para ir embora.

    — Luk — coloquei a mão em seu braço —, esta tudo bem. Calma...

    Ele tirou meu braço rispidamente, e foi embora bufando.

    — O que acabou de acontecer aqui? — me virei para Nataly.

    — Amada... — Ela disse em um tom de pena — Você ainda não percebeu...

    Então ela ficou calada e me conduziu de volta às salas, bem na hora que o sinal tocou. 

Rostos BorradosOnde histórias criam vida. Descubra agora