Capítulo LVIII

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Existem diversas consequências de se nascer mulher. Temos que lidar com a desigualdade de gênero, o machismo enraizado em uma sociedade patriarcal, os abusos, assédios e desrespeitos. Tudo isso porque nascemos com uma vagina; somos sempre vistas como pedaços de carnes expostas em um açougue, que os homens se sentem no direito de escolher, tocar, usar e abusar, como se nossos sentimentos e opiniões não importassem.

Minhas lágrimas quase nunca secam, toda vez que me lembro das mãos dele no meu corpo sinto nojo de mim mesma, como se estivesse suja.

Algumas vezes, o sentimento de culpa me domina, como se de alguma forma eu pudesse ter feito algo para mudar o que aconteceu. Mas céus! Eu estava com tanto medo, eu não sabia o que fazer, só conseguia pensar na arma que estava em sua cintura e na certeza de que ele não hesitaria em me matar se fosse preciso, então eu cooperei. E essa decisão tem martelado em meu peito constantemente, como se eu tivesse permitido que ele me abusasse.

Me lembro perfeitamente de suas ameaças no carro, enquanto ele me levava para a minha casa, e eu só conseguia tremer, aterrorizada com suas palavras nojentas, diversas vezes tive a sensação de estar olhando para um psicopata, seus olhos não demonstravam nenhum tipo de emoção, eram frios e vazios, e havia algo sádico por detrás deles.

No dia seguinte do todo o acontecido fui intimada a depor contra ele na delegacia, meu pai o havia denunciado e por mais que eu quisesse, não poderia fugir disso. Foi difícil contar o ocorrido, relembrar tudo era como uma tortura. A pior parte foram os jornalistas que tivemos que enfrentar na saída da delegacia. Evidentemente, isso foi um escândalo, Eduardo faz parte de uma das famílias mais influentes do estado e sua má conduta não ficaria abafada por muito tempo, por mais que sua família se esforçasse.

Nos jornais, fotos dele estavam estampadas, e letras gritantes delatavam seu crime, o rosto do Eduardo estava em um estado quase deformado, os olhos tão inchados e arroxeados que ele mal conseguia abri-los, então naquele momento eu tive a confirmação do que Nick foi fazer quando saiu acelarado em seu carro no dia em que tudo aconteceu, depois de ter visto o meu estado deplorável. Uma parte de mim se sentia feliz pela sua preocupação por mim, por me defender, mas existia aquela pequena parte que estava envergonhada, eu não conseguia lidar com isso, mesmo sabendo que de nada sou culpada.

Eu faltei à aula a semana inteira e ignorei as mensagens do Nick, eu não ainda não tinha coragem de encarar seus olhos novamente e suas inúmeros ligações e mensagens estavam acabando comigo, porque eu desejava os seus braços, mas não me sentia preparada para conversar sobre tudo. Eu pedi para que a empregada não deixasse ele entrar, então eu ouvia seus gritos lá embaixo, chamando inutilmente o meu nome. Rejeitei as visitas da Jessy e do Theo também, eu precisava desse tempo sozinha, precisava lidar com a tristeza e as crises de ansidade que se tornaram piores.

[...]

Respiro fundo encarando o portão de entrada do colégio, cogitando a ideia de voltar para casa e não aparecer no colégio pelo resto do ano escolar. Eu não perderia muita coisa já que restam apenas dois meses para o fim das aulas e o início da dura vida adulta. No entanto, não posso ser covarde, não posso fugir da realidade para sempre, tenho que lidar com o que houve, não foi culpa minha e eu não tenho porquê me sentir acuada. Toda a minha autoconfiança forçada vai por água abaixo quando resolvo encarar os corredores lotados de alunos, muitos olhares se voltam para mim e grande parte são de pena, enquanto alguns poucos parecem me julgar, ou talvez seja só a minha paranoia, é o que tento me convencer.

Inspiro antes de entrar na sala, não demora muito para que o pequeno burburinho se inicie, abaixo minha cabeça e apresso meus passos até a minha carteira, me sentando em seguida, mantenho minha cabeça abaixada. Pela minha visão periférica, posso notar que Nick  me observa, mas não consigo enxergar com clareza a expressão em seu rosto. No entanto, mantenho minha decisão de ignora-lo. As aulas passam e um silêncio anormal domina a sala, todos parecem um tanto quanto desconfortáveis, o que só piora o meu estado de ansidade. Me levanto em um rompante, atraindo olhares assustados, me movo pelo corredor de carteiras e sussurro para a professora que irei ao banheiro, não espero sua resposta para atravesar a porta em direção a ele. Eu estou correndo o risco de ser advertida, mas estou pouco me fodendo para isso, se permanecer mais um minuto naquela sala terei um colapso.

Entro no banheiro e me encaro no espelho, minhas olheiras estão horríveis, nem a maquiagem foi o suficiente para escondê-las, não durmo há dias e quando por um milagre consigo, sou assombrada pelos pesadelos. Hoje começo minha terapia, três vezes na semana depois da aula, não estou com o menor ânimo para isso, mas meus pais acham que isso vai me ajudar e, de certa forma, eles podem estar certos. Quando percebemos que não seremos capaz de lidar com algo sozinhos, então é hora de buscar ajuda.

Depois de jogar um pouco de água fria no rosto me movo até uma das primeiras cabines, seguro a porta para fecha-la, mas uma mão a impede, assustada abro-a de uma vez para encarar o dono dela. Meu coração dá um salto.

— Sai daqui, Dominic, esse banheiro é feminino — Minha voz não soa tão firme quanto gostaria.

— Não vou sair daqui até você falar comigo.

— Já falei, agora tchau — aceno com a mão e ele revira os olhos, transtornado.

— Já te disse isso uma vez e vou dizer de novo — Ele se aproxima. — Me tortura da maneira que quiser, mas não me ignora, isso acaba comigo.

— Eu não quero falar com você! — grito, sem conseguir conter minhas lágrimas.

— Rebeca, por favor caralho, você tá me matando, eu não aguento ver você assim — Nick não faz questão de esconder a dor e emoção por trás de sua voz. Tenho a impressão de visto um brilho em seus, mas ele desvia o olhar.

— Se você quer que eu te deixe em paz, eu faço isso, mas saiba que eu te amo e vou estar aqui quando precisar de mim.

Meu choro cessa no minuto em que ouço suas palavras, uma dor latejante começa em meu peito e eu tenho respirar fundo para me acalmar, permaneço aturdida por uns minutos. De repente, me sinto uma idiota por afastá-lo quando tudo o que ele quer é me apoiar no meu pior momento, eu também iria insistir se estivesse em seu lugar.

— N-Nick... eu... eu...

— Eu sei — Seus braços me envolvem com força e eu me permito desabar neles, levada por todo o tsunami de emoções dentro de mim, o cansaço, a dor, a desesperança, o meu amor por ele, a culpa, a vergonha. Tudo que está incrustado aqui dentro. — Eu estou aqui, meu amor.

Seus dedos sobem e descem pelas minhas costas, seu calor me acalma um pouco.

— Você não tem ideia da culpa que sinto por não ter sido capaz de salvar você disso, anjo — Ele sussurra, angustiado. — Eu daria a minha vida para que você não tivesse que passar por isso.

A dor por trás de suas palavras causam um incômodo em meu peito, levanto minha cabeça para encarar seu rosto.

— A culpa não é sua, Nick — murmuro, acariciando seu rosto com a ponta dos dedos. Mas isso não parece confortá-lo.

— Não, mas se eu não tivesse na porra daquele trabalho eu poderia ter estado com você — responde, com o maxilar apertado.

— Você foi atrás dele não foi?

Ele suspira e desvia o olhar para algum ponto atrás de mim, parecendo relembrar.

— Fui, ele tentou atirar em mim quando cheguei, mas o imbecil nem sabia como destravar, então eu me aproximei e quebrei a cara dele, você não tem ideia da vontade que tive de pegar aquela arma e estourar a cabeça daquele desgraçado — seus olhos estão escuros, raivosos.

Ele dá uma pausa e me olha para se certificar de que estou bem sobre isso. Entendendo sua preocupação, dou um pequeno aceno com a cabeça.

— Eu teria feito sem hesitar, mas se eu fosse preso eu não estaria aqui para cuidar de você.

Abro um sorriso curto, embora esteja contente com sua presença, ainda não me sinto bem.

— Senhor Dominic, vá para sua sala — nos sobressaltamos com a voz do diretor na porta do banheiro, embora sua expressão seja sério, seu tom de voz é quase piedoso. O que é realmente inesperado vindo dele, ainda mais vendo um aluno no banheiro feminino. — Rebeca, venha até a minha sala por favor.

ConsequênciasOnde histórias criam vida. Descubra agora