Assim que entramos na minha casa, meu maninho correu na direção do seu quarto ainda vestindo seu capacete de papel, sob o olhar sorridente de um homem que estava sentado no sofá assistindo TV. Com certeza, o pequeno herói estava sofrendo de abstinência de videogame, já que havia falado durante todo o caminho sobre o seu novo joguinho.
Quanto a mim, fui recepcionado já na entrada por um gatinho branco que correu na minha direção e começou a se esfregar nas minhas pernas.
Mas, por algum motivo, depois de me encarar por alguns segundos, ele mudou de atitude e passou a manter uma certa distância de mim, se deitando no canto do sofá, de onde passou a me acompanhar com seus olhos felinos, como se estivesse me analisando.
E eu podia jurar que ele conseguia ver através da minha alma e perceber que, por dentro, eu não era a mesma pessoa que ele conhecia.
É. Gatos, às vezes, são assustadores mesmo...
Pelo menos, já sei que não posso confiar nele...
O pai dela, que também estava sentado no mesmo sofá, por sorte não compreendia o que aquele gato estava dizendo. Pois certamente ele falava de mim com seu ronronado conspiratório.
Mesmo assim, aquele homem me dirigiu um olhar um pouco desaprovador ao me ver com aquele vestido, que tinha menos tecido que um pano de prato.
Baixei a cabeça por um momento e permaneci sem dizer nada.
A casa não era das maiores. Parecia limitada a uma sala, cozinha, uma área de serviço, banheiro e quatro quartos, onde o da Tainara era visível de onde eu estava, sendo o primeiro do corredor à nossa esquerda, com o nome dela escrito de maneira estilizada num pedaço de cartolina colado na porta.
— Você saiu com essa roupa, Tainara? — perguntou ele, mantendo uma expressão de dúvida. — Eu podia jurar que tinha saído vestida de calça jeans.
Pronto... Como se não bastasse tudo o que já passei, acho que ainda vou ficar de castigo para completar...
E tive a nítida impressão de que aquele gato ao seu lado deu um sorrisinho de canto de boca, erguendo os bigodes do lado esquerdo, como se quisesse dizer na minha cara: te pegaram, seu trapaceiro ladrão de corpos!
— Pois é... — murmurou a mulher, que devia ser a mãe da Tainara, vindo da cozinha. Ela olhava para mim com a mesma expressão de dúvida, embora o olhar desaprovador sobre minha roupa fosse um pouco menos intenso. — Você comprou esse vestido no shopping? Não me lembro de ter lhe dado dinheiro pra isso.
Juro que o gato se espreguiçou de propósito sobre o sofá numa clara provocação e continuou me encarando com o mesmo sorriso presunçoso naquela cara felina sem vergonha.
Sério. Já estava odiando ele.
Meu silêncio obrigou minha amiga a intervir a meu favor nas explicações:
—O vestido é meu, dona Suzana. Eu comprei, mas tive que emprestar a ela. E tava numa promoção ótima! Acredita que...
— Teve que emprestar o vestido por que? — continuou questionando a mulher, interrompendo a tentativa de mudança de assunto proposta pela minha amiga sobre o preço da peça.
— Ela só molhou a roupa dela. Mas tá tudo bem.
Após responder, Geovanna segurou minha mão e foi nos guiando na direção do meu quarto.
— E como ela molhou a roupa? — Desta vez, era o pai quem perguntava. E isso nos forçou a parar no meio do caminho.
Por enquanto, eles estavam questionando sobre aquilo de modo amigável, sem imaginar que algo estava sendo escondido por nós. Mas isso poderia mudar a qualquer momento e as perguntas poderiam se tornar um interrogatório se eles sentissem que algo estivesse sendo ocultado.
Pais tinham esse superpoder de desencavar as mentiras mais bem guardadas dos filhos.
— Deixa comigo... — murmurou minha amiga ao meu ouvido, tão baixo que eu quase não consegui ouvir.
OK, vamos ver se a improvisação dela era mesmo eficaz.
— Um caminhão passou numa poça d'água e deu um belo banho nela — disse minha amiga, escolhendo uma desculpa básica que parecia convincente. — O senhor tinha que ver, seu Ivo. A calça dela ficou ensopada.
Ele arqueou as sobrancelhas. — Poça d'água...? Mas já não chove a mais de uma semana!
Droga...
— É que tinha acabado de virar um caminhão de bombonas de água naquela rua — prosseguiu Geovanna, numa aula de como não improvisar. — Metade estourou e quase inundou tudo. Parecia que tinha chovido de tanta poça d'água que formou.
Não acredito que ela falou isso...! Ela tá do lado de quem?
— Um caminhão virou? — O homem se mostrou ainda mais duvidoso. — E por que não ouvimos nada? O shopping é aqui perto.
Dona Suzana já estava na janela da frente, com a cabeça para fora, conferindo atentamente tudo ao longo da rua, que era a mesma rua que levava ao shopping.
E, obviamente, não viu nenhum caminhão tombado.
— Porque não foi bem o caminhão que virou — prosseguiu Geovanna, com uma calma invejável. — Na verdade, foi só a lateral da carroceria que se abriu e caíram as bombonas.
Mas eu tinha que admitir, ela mentia com convicção. Se a história não fosse tão absurda, seria facilmente crível...
De qualquer forma, meu castigo parecia estar madurando.
— Mas...
— Ivo... — Suzana chamou a atenção do seu marido antes que ele completasse a frase. — Deixa... — E revirou os olhos, como se não fosse a primeira vez que ouviam histórias absurdas vindas daquela garota. E, para minha sorte, ele cedeu ao pedido imediatamente, balançando a cabeça como se lembrasse apenas agora com quem estava falando.
Minha amiga parecia já ter um histórico nada favorável com eles no quesito falar coisas sem sentido.
Então, com um gesto do senhor Ivo, tivemos a liberação para deixar aquela sala de interrogatório.
Mas tão logo entramos no quarto e fechamos a porta, dona Suzana a abriu, colocando apenas a cabeça para dentro, enquanto se segurava para não rir da história ridícula contada pela grande improvisadora Geovanna.
— Olha, vocês não precisam inventar desculpas para trocar de roupa. Eu também fazia isso na idade de vocês — começou ela, falando aquelas palavras com um sorriso amistoso. Porém, ficou um pouco mais séria logo em seguida: — Mas isso não é legal. Sabe que seu pai não gosta que compre vestidos assim. E usar eles emprestados é a mesma coisa. Sei que você gosta desses vestidos, mas se quiser que ele mude de ideia, não faça as coisas escondida.
— Mas ela não usou escondido, dona Suzana. Ela tá mostrando aqui, ó! E ficou linda, não?
— Mas você não fez da maneira certa, Tainara. — A mulher continuou falando diretamente para mim. — E sabe disso.
— Entendi... mãe — respondi, achando estranho me dirigir a ela com aquela palavra. — Não vai acontecer de novo.
— Sei que não vai. — E sorriu, depositando um beijo no topo da minha cabeça e outro em Geovanna. — Mas tenham mais juízo, heim? — disse por fim, saindo do quarto.
Depois do pequeno sermão, encostamos a porta, mas não a fechamos totalmente, ainda ouvindo um pedacinho da conversa entre o casal, quando Suzana tentou apaziguar a situação:
— Ela já está crescida, querido. E já pode usar essas roupas. E não estava tão curta assim , vai...!
— Mas é a questão da permissão. Ela deveria ter pedido. E ela perdeu pontos hoje.
— Mas viu como ela estava arrependida, toda encolhida e sem graça? Tadinha...
— Pois é. Carinha de arrependimento. E é ali que está o golpe — afirmou ele, agora mais bem-humorado. — E nós sempre caímos nele.
Em seguida, começaram a conversar sobre outro assunto. Então, como o assunto Tainara já estava fora da pauta, fechei a porta.
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Consciência Viajante
Teen Fiction(Classificação +14) Ele despertou na beirada de um prédio, prestes a cair. E após enfrentar momentos de tensão para impedir uma queda fatal, acabou descobrindo que acordar naquela situação aflitiva não era o maior de seus problemas. Logo se deu cont...