Capítulo 2 - Cantada ( ... )

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Comecei a descer as escadas devagar. E durante o caminho para baixo, minha cabeça era invadida por dúvidas que só cresciam: eu subi sozinho? Ou fui levado por alguém e deixado lá em cima?

E por que diabos eu estava lá em cima? E na beirada do prédio!

Continuei descendo, ainda com passos lentos, tomando cuidado. E após o quarto lance de escadas, me deparei com uma porta. E atrás dela eu já ouvia vozes. Pessoas conversando.

De maneira discreta, abri um pouquinho e espiei do outro lado por uma fresta. Percebi pessoas caminhando de maneira despreocupada de um lado para o outro.

OK, não parecia um lugar perigoso.

Vencendo o receio, abri a porta um pouco mais e a atravessei, me deparando com um lugar amplo e cheio de... lojas. Ainda tentando não chamar a atenção, comecei a caminhar também, tentando me mesclar naquele cenário e passar despercebido.

Continuei explorando o lugar e não demorou para que eu descobrisse onde estava. As várias lojas chiques se amontoando ao longo dos corredores e as pessoas carregando sacolas de compras deixavam claro que se tratava de um shopping center.

OK. É um shopping. Eu estava no topo de um prédio onde funciona um shopping.

O que eu devia fazer agora?

Mas uma sensação desagradável de aperto roubou minha atenção, me obrigando a agir com mais pressa.

Só que, desta vez, não eram as roupas me apertando.

Tentei ignorar aquilo enquanto buscava inutilmente respostas para as várias perguntas sobre mim mesmo. Sobre como vim parar naquele lugar. Mas todas aquelas questões logo foram deixadas de lado, me fazendo buscar a resposta para uma nova pergunta, que se tornou desesperadamente urgente.

Onde era o banheiro?

Comecei a andar prestando atenção nas placas indicativas e logo achei a informação que buscava: os banheiros eram no andar de baixo.

Droga...!

Bastou eu me concentrar na necessidade de ir ao banheiro que a vontade pareceu apertar ainda mais.

Sem perder tempo em procurar elevadores ou escadas rolantes, desci pelas escadas normais, mas já andando com as pernas bem juntas, me preocupando em não forçar o passo para evitar uma tragédia.

Embora os passos curtos talvez me trouxessem o problema de chegar lá tarde demais.

Ou seja, eu me encontrava num dilema.

Sensações esquisitas estavam praticamente se acotovelando dentro de mim, clamando pela minha atenção. Parecia que tudo em mim estava fora do lugar e estranho. Além da calça apertada, me incomodava também a sensação de que meus cabelos estavam presos, repuxando meu couro cabeludo. E ao levar uma das mãos à cabeça, percebi que ele estava realmente preso, amarrado num rabo de cavalo.

Ou seja, meu cabelo era comprido.

Até aí não teria nada demais.

Mas o susto real veio quando conferi o comprimento deles.

Mas o que que é isso?!?

Não eram compridos. Eram absurdamente compridos! Se os soltasse, eles chegariam facilmente na altura da minha cintura.

Parei de andar por um momento enquanto encarava aquela grossa tira de fios negros em minha mão. Ao aproximar do rosto, percebi que exalavam um cheiro muito bom. Uma fragrância suave e adocicada.

Tipicamente feminina.

Morango...

Eu uso xampu de morango...?

Mas minha bexiga quase estourando pediu passagem e pulou à frente na fila das minhas preocupações urgentes. O cheiro e o comprimento dos meus cabelos logo ficaram em segundo plano quando recomecei a caminhar, focado em encontrar um banheiro.

Focado, não. Desesperado, com todas as minhas atenções voltadas para o esforço em não fazer xixi nas calças.

E foi com um grande alívio que meus olhos rapidamente vislumbraram, adiante, uma linda placa escrita: BANHEIROS.

Graças a Deus...!

Com todo cuidado do mundo, acelerei um pouco o passo com o olhar fixo nas portas abaixo da placa, torcendo para que tivesse pelo menos um mictório vago, porque se eu tivesse que esperar mais dez segundos depois de atravessar aquela porta, acho que seria meu fim.

Mas antes que eu chegasse ao destino tão almejado, três sujeitos cruzaram comigo, me dirigindo olhares com um alto teor de indiscrição após uma conferida de cima abaixo na minha roupa, acrescentando um estranho sorrisinho de flerte.

Só aqueles olhares com os sorrisos já seriam bastante perturbadores, no entanto, a cereja do bolo veio no momento em que eles já estavam passando por mim, quando o cara do meio olhou para minha bunda e soltou um:

— Ô, lá em casa...!

Peraí...! O cara me... cantou??

Antes que me desse conta, já havia me virado na direção dele, respondendo num tom alto e indignado:

— Ei, tá me estranhando, é?

E minha reação apenas arrancou risadas deles, que continuaram caminhando, se divertindo com minha resposta.

Mas enquanto eles se afastavam, não sei o que me assustou mais. Se foi a quase tragédia líquida que por pouco não escorreu pelas minhas pernas devido ao esforço em retrucar o comentário, ou o choque que senti ao dar atenção à minha própria voz durante aquela exclamação revoltada.

Minha voz havia saído fina demais, soando estranhamente feminina.

O que aconteceu? Eu inalei gás hélio antes de vir pra cá?

Porém, tudo isso foi deixado de lado quando finalmente alcancei as portas dos banheiros e segui para o lado masculino, devidamente indicado com o desenho de uma cartola acima da palavra Eles.

Por sorte, havia apenas uma pessoa lá dentro, que pareceu levar um enorme susto quando me viu entrando.

OK, eu admito que estava bem apurado e não conseguia mais disfarçar, já andando com as pernas coladas.

Mas não era motivo para assustá-lo tanto. Ele parecia ter visto um fantasma.

Quase no limite de meu controle, fui direto para o mictório mais próximo, abri o zíper da calça rapidamente e...

AAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHH!!!!!!!!!

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