— Um nome...! — repetiu ela, num tom de voz insinuando que minha pergunta foi idiota. — Não vou ficar te chamando de Tainara o tempo todo. Porque você não é a Tai — explicou. — Claro que na frente dos outros eu tenho que te chamar assim, mas quando estivermos sozinhos, não vou ficar te chamando pelo nome dela.
E ela tinha razão. Estar com amnésia não era razão para permanecer sem um nome. Pelo menos, nos bastidores. Eu deveria improvisar um até descobrir qual era o meu nome de verdade.
Então, sugeri o primeiro que me veio à mente. — Que tal... Henry?
— E por que Henry? — questionou ela, parecendo não ter gostado da minha escolha.
Dei de ombros. — Eu gosto de Henry. É um nome legal. E foi o primeiro nome que me veio à cabeça. Talvez, eu tenha cara de Henry.
— Você não tem cara de Henry.
— Como sabe disso? Pode ser que meu rosto verdadeiro seja até parecido com o do Henry Cavill — insinuei. — Bom, pelo menos, um Henry Cavill mais jovem.
— Convencido... E não! Você não pode escolher um nome para si mesmo. Eu é que vou escolher um nome para você.
— OK. Você escolhe — concordei, procurando evitar uma discussão que seria desnecessária. — Por falar em nome, o que significa esse número 2 no final do seu nome nesse pingente?
— Ah, isso? — Ela retirou o cordão dourado que estava oculto sob a blusa e o colocou diante dos olhos: XOVANNA2 — Não é nada. É só um defeito de fabricação. Aí o cara da joalheria me vendeu mais barato. Mas eu finjo que esse 2 está aqui porque eu sou a segunda filha, já que tenho uma irmã mais velha.
— Xovanna... — murmurei. — É bem incomum esse nome.
— Era para ser Geovanna. Mas meu pai estava bêbado quando foi me registrar e acabou ficando assim — revelou ela, dando de ombros enquanto exibia um sorriso nostálgico ao relembrar esse detalhe de sua história.
— E sua mãe não estava junto?
— Estava sim.
— E ela deixou?!
— Minha mãe também estava bêbada — acrescentou ela, com seu sorriso quase virando uma risada.
— O que?!?
— É que eles estavam muito felizes com o meu nascimento. Estavam festejando ainda. E... — Após a pausa na frase, ela passou a me observar de soslaio, com os olhos apertados. — É impressão minha ou está insinuando que o meu nome é feio?
— Não! Não é nada disso. — Coloquei-me na defensiva. — É que eu só...
— Calma, seu besta — riu ela em seguida. — Eu estava só brincando. Eu gosto do meu nome.
À essa altura, o colégio já estava a apenas uma quadra de distância e continuamos andando, com Vanna começando com as esperadas perguntas que focavam no tema: como é ser um garoto no corpo de uma garota?, onde respondi de maneira bem vaga, sem dar muitos detalhes, me esquivando o máximo que podia e torcendo para que mudássemos de assunto.
Principalmente, porque na noite anterior, quando houve aquela inocente conversa por vídeo entre ela e Tainara, foi um garoto quem viu a sua lingerie nova por todos os ângulos, além do bônus de vê-la nua quando a toalha caiu.
Mas para minha sorte, ela ainda parecia não ter se dado conta deste pequeno detalhe.
Quando faltava uns cem metros para o portão do colégio, Vanna tocou no meu braço e me pediu que atravessássemos a rua. Na nossa frente, havia uma grande lixeira de metal, que imaginei ser a razão pela qual deveríamos deixar aquele lado da calçada. Apesar de achar um cuidado exagerado, acatei sua sugestão e cruzamos a rua. Segundos depois, alcançamos a calçada oposta.
Foi então que, olhando para o outro lado, notei que atrás da grande lixeira havia um mendigo sentado num pedaço de papelão, que se manteve oculto da minha visão até aquele momento exatamente pela presença da enorme caixa de metal.
Era um homem magro, de cabelos grisalhos e usando roupas escuras e desgastadas, com alguns rasgos em vários pontos. Aparentava já ser idoso, mas os cabelos desgrenhados e a barba espessa certamente lhe conferiam alguns anos a mais do que talvez tivesse na realidade. Ele estava exatamente abaixo da marquise de uma loja abandonada, fato que o protegia do forte sol. Ao seu lado, descansava uma bola de futebol bem judiada.
— Foi por causa dele que viemos para esse lado? É só um morador de rua — argumentei, me sentindo mal pela atitude de segui-la e cortar a rua apenas para não passar perto dele.
— É — respondeu ela, sem jeito. — Mas é bom evitar, né?
— Evitar o que? — E continuei encarando-a, esperando o complemento de sua justificativa.
Uma justificativa que não veio, ficando limitada ao silêncio e um abaixar de cabeça.
Voltando a olhar para o outro lado da rua, meu olhar cruzou com o do mendigo, que havia erguido os olhos por um segundo. Mas ele logo os baixou mais uma vez, se sentindo envergonhado e inferiorizado simplesmente por ser quem ele era.
Sentindo-me ainda pior após esta sua reação, eu ergui o braço e acenei, conseguindo sua atenção. Seu rosto se ergueu de novo e ele me fitou por mais um segundo, passando a olhar em seguida para os lados, procurando a pessoa que eu estaria tentando chamar a atenção.
Até que eu fiz um gesto apontando diretamente para ele, acrescentando um sorriso, fazendo-o entender que meu aceno era mesmo para ele, para cumprimentá-lo.
Ele, então, retribuiu ao aceno e também sorriu, voltando a baixar o rosto em seguida, mas desta vez, com o sorriso mantido.
E durante aquele breve momento, foi nítido que ele voltou a se sentir visível de novo. Importante.
Voltou a se sentir uma pessoa de verdade.
E perceber aquilo abrandou o meu sentimento de culpa.
Continuamos andando.
— Miguel — disse Vanna, de repente.
— Miguel? — repeti o nome, confuso. E olhei sobre o ombro, alcançando a silhueta do mendigo, que já havia ficado para trás. — O nome dele é Miguel?
— Não. Você. O seu nome será Miguel.
— E por que Miguel?
— Pela sua atitude com aquele mendigo — explicou ela, também olhando para trás por um momento, o semblante envolto em uma máscara de culpa. — Ninguém dá atenção pra ele. — E logo se viu obrigada a acrescentar, baixando a cabeça com um sorriso de autodesprezo: — E a gente até se acostuma a fazer o mesmo, porque nem eu costumo dar o mínimo de atenção pra ele... E pior ainda, cheguei a ter medo dele. — Mas um sorriso de orgulho logo tomou seu rosto quando voltou a olhar para mim. — Mas você conseguiu fazer ele sorrir só com um aceno! Foi como um anjo na vida daquele homem. Deu um pouco de alegria e esperança a ele. — Após aquela breve dissertação, ficou pensativa com um sorriso torto no rosto. — Estou meio poética hoje, não?
— É. Está sim — concordei, sorrindo para ela, aprovando o nome que me fora dado. — Miguel...! Gostei. É um nome bonito.
— Obrigada. Você mereceu um nome bonito.
— Mas Miguel não é exatamente um anjo. — observei. — Na verdade, se for levar em consideração a casta angélica da qual ele faz parte, Miguel é um arcanjo.
Ela me encarou com os olhos apertados e ameaçou:
— Se começar a bancar o sabichão, eu vou te chamar de Artaxerxes.
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Consciência Viajante
Novela Juvenil(Classificação +14) Ele despertou na beirada de um prédio, prestes a cair. E após enfrentar momentos de tensão para impedir uma queda fatal, acabou descobrindo que acordar naquela situação aflitiva não era o maior de seus problemas. Logo se deu cont...